segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Pensamento de Ano Velho (II)

Uma das mais enigmáticas frases que já ouvi foi a de um bancário chegado tarde a uma reunião para assinar um contrato que incluía contrapartes vindas expressamente do estrangeiro. Embora com mais de hora e meia de atraso, comprazia-se com o facto de alguns dos outros, provenientes do aeroporto, terem chegado uns minutos depois dele. E lá ecoou a frase que memorizei: «Em Portugal, ser pontual custa dinheiro!» Referindo-se, porventura, ao que teria produzido na hora e meia de trabalho em que consumira o atraso. Independentemente das dúvidas sobre a sua veracidade, tomei-o como um dito engraçado. Com a nuance de poder ser utilizada como um improvável ascendente numa qualquer discussão sobre a proverbial falta de pontualidade lusitana. Tenho-me lembrado muito disto em Luanda. E da produtividade encoberta que, certamente, se registará por detrás da ausência de qualquer noção de compromisso horário dos nossos patrícios angolanos.

domingo, 30 de dezembro de 2007

Pensamento de Ano Velho (I)

Em Economia, uma das mais clássicas e nem sempre compreendidas distinções é entre os conceitos de eficiência e eficácia. Os anglo-americanos, que têm tendência para incluir estas coisas numa espécie de dicionário do mundo dos negócios a que, muito antes ainda da entrada em vigor da globalização, já davam o nome de buzzwords, distinguem-nos entre «doing things right» e «doing right things». Dou comigo, em vésperas de fim-de-ano e no intervalo da minha iniciação à economia de Angola, a matutar nisto e a arriscar uma outra distinção. O que diferenciará a eficiência da eficácia é a gasosa. Sem que, com isto, pretenda pôr em causa, obviamente, Adam Smith e os três séculos de história da ciência económica.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Visto assim...

Um dos ícones de Angola, para os expatriados que para lá vão emigrando, são os vistos de entrada, sem os quais não é permitido o desembarque a quem lá anseie arribar. São vários os objectos destes vistos, desde trabalho, residência e turismo, até aos mais comuns ordinários. São reconhecidas as dificuldades que qualquer um deles coloca aos viajantes na sua obtenção. Tal como a simpatia com que esta burocracia é aceite, principalmente em quem lá vai para trabalhar a tempo inteiro. Desde logo, porque a dificuldade em obter um visto de trabalho, que em média é de cerca de um ano, é coberta com uma sucessão de vistos ordinários, os quais permitem estadas até 30 dias e duas renovações locais por iguais períodos de tempo. Na prática, qualquer assalariado ordinário vê-se forçado a regressar a Portugal uma vez em cada trimestre a fim de poder solicitar a emissão de um novo visto de entrada em Angola. O qual obriga, em média, a uma espera de dez dias úteis até que volte a ser novamente concedido. Um martírio temporal que, afinal, qualquer tuga enfrenta estoicamente com um sorriso nos lábios. Sendo porventura esta a única ocasião em que a tantas vezes apregoada lentidão angolana não é motivo de reprovação.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Natal angolano

Desconheço como será o ambiente do Natal em Luanda e espero nunca ter de o conhecer. Será sinal de que conseguirei preservar a ponte, entre outras coisas pavimentada pela obrigação de renovação de vistos, com a minha memória natalícia, ela própria uma metrópole de signos que não tem admitido, até agora, uma qualquer outra realidade ultramarina. Há uns dias atrás fui surpreendido com a informação de que os angolanos festejam o Natal com o mesmo bacalhau-com-batatas-e-couves que se coze nesta época em Portugal. O que considero espantoso. Haver um país, que não o nosso, que assuma assim a herança do culto de um peixe pescado num mar que nem sequer o banha e que se disponha fielmente a consumi-lo no banho-maria dos mais de 40 graus centígrados de uma das suas noites de Dezembro. Desconheço, do alto dos meus míseros dois meses de Angola, se haverá por aqui um maior sinal do tributo local à cultura portuguesa. O que tenho a certeza é que, se alguma vez tiver o azar de por aqui ficar no Natal, também eu irei degustar deste mesmo bacalhau cozido com batatas e couves. Mesmo se estas provirem da Namíbia ou do Botswana.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Em cada porto uma memória

Os especialistas em sistemas de informação são os novos navegadores do mundo global. Cada vez mais pagos por projecto, calcorreiam o mundo de laptop a tiracolo, sempre na expectativa da dobragem de um informático cabo da boa esperança. Sendo um povo com pergaminhos na matéria, tenho encontrado por aqui alguns tugas que têm feito de Angola destino de sucessivos embarques e desembarques. Um deles anda nisto há já dezoito anos, saltando de uma fronteira política para outra e anotando as diferenças desta tribalista e colorida África. A verdadeira, a que existe para além das notícias dos telejornais. Depois de tantas cruzadas, tem a sabedoria de quem há muito defralda velas e vidas por estes, ainda agora e talvez para sempre, lusos oceanos de gente. São Tomé e a pesada humidade do clima, que tanto atrai mosquitos como doenças e cria frutos a uma velocidade muito superior a qualquer recolha humana. O cálido e calmo Cabo Verde,cuja mestiçagem o vai tornando cada vez mais ibérico. Os suaves moçambicanos, aparentemente alheados da mudança da capital do império para Pretória. Também Luanda, porto a que tem arrivado mais frequentemente por cada vez serem mais as caravelas que por aqui vão lançando ferro. Fala-se com este navegador e percebe-se que legenda as recordações africanas em português. Com a memorável excepção da enfermeira francesa voluntária num hospital do Mali, que parece recordar em grandes travellings mudos. Também é deste tipo de replays que se vão alimentando os sonhos dos marinheiros que cirandam por estas paragens.

sábado, 8 de dezembro de 2007

Judas?

Com a estranha distensão que vem sendo cada vez mais demonstrada na quadra natalícia, num claro sinal de que a tradição já não é o que era, esta foto foi depositada no meu correio sem qualquer comentário adicional. Poderia bem considerá-la um imagético exercício de pura e refinada ironia se se tratasse do e-mail onde tenho albergado o Nos Cus de Judas. Mas não. De todo o modo, juro que não irei mudar o nome ao blogue.

O respeitinho é muito bonito

Porque acredito na mensagem que encima este postal, vou passar a responder aos comentários que recebo. Não o fiz até agora por considerar que só me interessaria debruçar sobre o que escrevo, o que nem sempre ocorre com os assuntos que são despejados nas caixas de comentários. Gato escaldado de anteriores pias blogosféricas foge. No entanto, apercebo-me agora, após ter igualmente despejado uma campanha pirata de auto-promoção em diversos outros marcos, de que começo a ser lido. Mais do que isso, há até quem se dê ao trabalho de comentar o que se escreve aqui, seduzindo-me a abandonar o monólogo. Pois bem, fá-lo-ei com a mesma deferência com que for convidado a dialogar.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Sinfonia lusitana

No início do jantar o ambiente na sala estava sereno, quase monocórdico. Uma meia dúzia de mesas jaziam ocupadas por alguns grupos de pessoas que certamente sussurravam os balanços das respectivas jornas. Os empregados, equipados com grandes cartes, pareciam patinar os salamaleques dos modos por entre as mesas redondas do restaurante. Alguns toques de pratos, talheres e copos compunham a orquestra daquele soturno semi-silêncio. De repente, entra um grupo de seis jovens tugas. Certamente informáticos, a avaliar pelas grossas bolsas dos laptops com que vinham armados. Aproximaram-se da requerida mesa-para-seis, entrecruzaram mútuos esgares de assentimento e decidiram-se a sentar. Antes, ainda tiveram tempo para largar as armaduras no meio da pista, inconscientes dos eventuais estragos causados à arte dos empregados de mesa. Enquanto ainda hesitavam no que pedir, na bolsa polifónica das sugestões do menú, um deles começou por degustar a confirmação da reserva do bilhete de avião que conseguira obter nessa tarde e que lhe pusera o Natal mais próximo. Daí a uns minutos, como que por antecipação, todo o restaurante luzia do colorido de recordações intermitentes, que misturava bacalhau cozido com vinho-fino, nozes com rabanadas, a casa da avó com lareiras acesas e muitas outras inconfessadas memórias, todas polvilhadas por secretos sacos de prendas, num surto de alegre cacofonia que inexplicavelmente se espalhou por todas as outras mesas entretanto preenchidas. Inexplicavelmente? Talvez não tanto assim. Afinal, trata-se da sinfonia lusitana em que se vai transformando o ambiente de pré-Natal que se vem vivendo em Luanda.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Violência gratuita

Ontem de manhã, enquanto regressava do supermercado, assisti a uma cena triste. Um homem que havia sido transportado num dos taxis locais e que ter-se-à recusado a pagar os 400 kwanzas da corrida, foi sovado em plena faixa de rodagem pelo condutor e pelo pica. O passageiro, jovem nos seus trinta anos, bem mais encorpado do que os antagonistas mas completamente bêbado, acabaria por ser deitado ao chão para ser socado e pontapeado pelos outros dois, numa tão desproporcionada quão gratuita manifestação de violência. Em redor da cena, entre passageiros e transeuntes, ninguém ensaiou qualquer protesto. Duplamente à distância, entre o nojo e o desconforto de me encontrar na assistência, dei por mim a interrogar-me sobre o carácter universal da noção de cidadania. Entretanto, o homem acabaria por conseguir levantar-se entre dois pontapés e os outros dois deram por bem cobrada a dívida e arrancaram no taxi. Felizmente, também, para mim, que pude abandonar o local e deixar adiada para uma outra ocasião a resposta à minha própria interrogação.

sábado, 1 de dezembro de 2007

Kuduro Taxis

Um dos símbolos mais kitsch de Luanda são os taxis, industrialmente também conhecidos por candongueiros. São geralmente carrinhas de nove lugares mas onde, talvez para justificarem o cognome, podem lá caber perfeitamente o dobro dos passageiros. Distinguem-se no trânsito pela sua cor azul e pelo tipo de condução. Em bom português, o sempre-a-assapar. Desconheço se haverá algum tipo de requisitos ou formação exigíveis a um condutor destes veículos, por exemplo, a carta de condução, mas desconfio que não. Daí o seu contributo no caos que grassa nas ruas de Luanda. Desde conduzirem em contra-mão, em ruas com sentido proibido ou por cima dos passeios, até fazerem ultrapassagens pela quarta faixa da esquerda, por sinal a única via livre para quem vem do sentido inverso. Já para não acrescentar o hábito dos próprios passageiros terem de sair para os empurrarem nas subidas. Ou o destes taxistas utilizarem a zona interior das rotundas como local de paragem, regateio e pagamento das corridas. Só não poderão ser acusados de passarem linhas contínuas porque há muito que a indústria de tintas faliu por estes lados. Os sinais de trânsito mais fiáveis, para eles, são as maõs com que vão acenando das janelas e que indicam aos outros, qual GPS, o que pretendem fazer. Todo o restante trâfego fica dependente do que decidem fazer em cada momento os condutores destes taxis. Quase sempre bem dispostos, embora stressados, algo alienados nas suas boinas jamaicanas e sempre entretidos a procurar o botão que faz aumentar o som da música que transportam no tablier. Por estes lados, o kuduro é, mesmo, o que está a dar.

Outra Capital do Móvel

Há um mês e meio atrás, em trânsito para Luanda, recebi vários avisos para me manter atento aos sinais que me dariam os mercados locais. Porquê? Porque há muito boa gente que procura estender para Angola os negócios que vegetam em Portugal. Alugo um estaminé e transfiro para lá mercadoria mal me arranjes alguém de confiança para tomar conta da máquina registadora e dos livros. Pelo menos das folhas que forem necessárias. Pois bem, acabo de terminar a prospecção de mercado. O melhor sector para investir em Angola é, inquestionavelmente, o das cadeiras. Principalmente se forem de plástico. É o que mais se vê nas ruas de Luanda. As frentes das torres de escritórios, hoteis, bancos, lojas, agências de todos os comércios e actividades, blocos de apartamentos, vivendas, casas e barracas, estão ocupadas com os agentes das inúmeras empresas de segurança que infestam a capital angolana. Cadeiras, geralmente de plástico, onde fardas de todas as cores, tamanhos e aprumos descansam durante a ininterrupta vigília. É no que deu a propalada bandidagem de Luanda: transformou-a numa outra Capital do Móvel.