sábado, 24 de maio de 2008

Adeus lições de trigonometria

Diz-se que as autoridades de Luanda pretendem acabar com a circulação dos candongueiros no centro da cidade e trocá-los por uma frota de autocarros. Penso que será um duro golpe para todos os que, como eu, se habituaram a olhar aqueles populares taxis colectivos, cuja lotação vi tantas vezes ser esticada dos formais nove para mais de vinte passageiros, como um dos mais fortes e genuínos ícones desta terra. Acredito que a retirada destas geralmente encarquilhadas carrinhas listadas de azul e branco, que se diz representarem 50% da frota automóvel local, venha a tornar a circulação no centro de Luanda bem mais fluente. Mas também, seguramente, muito mais chata. Com que passarei então a distrair-me se acabarem com o filme diariamente projectado nas janelas do jipe que me transporta nesta cidade? Certamente que não com a banalidade dos carros que abrandam perante os sinais de perda de prioridade que antecipam uma rotunda ou um cruzamento! Ou com os que param nos stops! Ou com os que nunca por nunca circulam pelas bermas das estradas! Sequer com os que dão prioridade aos peões nos passeios! Aliás, creio bem ser capaz de regressar a Portugal se, como ameaçado, eles deixarem de fazer parte do meu dia-a-dia em Angola. Por suspeitar não mais conseguir viver aqui sem eles, sem essa contínua emoção de sinuosos desvios de rota, sem a surpresa da condução de cotovelos na janela do condutor e de cabeças a arejar em todas as outras, do espectáculo dos coloridos bonés rasta e dos fumarentos roncos dos motores movidos a reggae e a kuduro. Então e as lições de trigonometria a que assisto todos os dias no percurso para o trabalho?! Atacar as rotundas como se estivessem vazias de trâfego, passar tangentes no espaço equivalente a três faixas de rodagem para encostar ao centro, descarregar e voltar a carregar passageiros por entre um festival de buzinas e tornar a arrancar rumo à saída imediatamente à direita como se afinal circulásse no Sahara?! Fugir a um engarrafamento e acelerar em contra-mão pela berma da faixa contrária?! Não ter quaisquer pruridos em subir passeios, com duas rodas se estreitos, com as rodas todas se suficientemente largos?! Ou em enviar para o centro da via os peões atarantados?! Não parar nos sinais de controlo de velocidade de bairros residenciais?! Não ligar ao verde para os peões sempre que não se vê nenhum no passeio?! Parar a cada momento na estrada sempre que o pica, que também faz de placard, grita um destino e alguém se candidata a aumentar a lotação?! Responder, enfim, «p'ra esquadra» sempre que a polícia os descobre sem luzes, nem espelhos retrovisores, nem guarda-lamas, nem pneu sobressalente, nem registo de propriedade, nem seguro, nem carta e os coloca entre a difícil alternativa existencial de pagar multa ou passar uma temporada entre ferros?! Por isso vou já reservar o meu bilhete de regresso. Receio bem que estas alterações sejam condição suficiente para protestar o meu contrato de trabalho por aqui.

domingo, 18 de maio de 2008

Mais próximos do paraíso

«É muita obra / o país está a funcionar / ainda falta andar muito / mas estamos lá a chegar». Assim legenda a golpes de batuque na TPA o Ministério das Obras Públicas do Governo de Angola as imagens freneticamente montadas de cimento, ferro, andaimes, trolhas, tractores, betoneiras, prédios, jardins, parques, escolas, hospitais, estradas, portos, carris, indústrias de cerveja, de coca cola e de papel higiénico, populações de enxada na mão a fazer covas em solos ressequidos na vizinhança de cubatas, mulheres a cegar plantações de rabo para o ar e bébés a tiracolo e o close-up de velhos aldeões entusiasmados em ressuscitar sorrisos desdentados. Fora da alegria oficial, reparei esta manhã que a ilha de areia que a força do esgoto erigiu nas marés baixas da baía de Luanda se havia transformado num campo de futebol. Duas equipas de três miúdos, rapidamente reforçada por mais alguns, chutavam uma bola para balizas de pneus e pedras, correndo de pés descalços sobre um pelado com epiderme de latas, garrafas de vidro, ferros retorcidos e outros sedimentos cortantes que o caudal do esgoto e o déficit higiénico das populações vêm fielmente depositando ali há anos. A irmandade da assistência ao prélio era tão irreal quanto as notícias da chegada à antecâmara do paraíso que os spots do regime propalavam. Desde a geral dos vagabundos que ainda estremunhavam de chapéu de pai-natal na cabeça debaixo dos arbustos que rastejam no calçadão da marginal, passando pela desusada atenção dos inúmeros guardas privados que costumam dormitar nas cadeiras de plástico que enxameam as entradas dos edifícios desta cidade, até aos camarotes dos curiosos que assomavam às varandas dos prédios defronte, cheios de cordas para secar roupa e onde, a crer em Bob Geldof, se encontram as t-shirts, as cuecas e os soutiens mais caros do mundo. Desconheço se os miúdos que pontapeavam a bola naquele oásis de areia e de sonhos teriam noção de que aquele poderia bem ser o seu último jogo ali. No local do improvisado estádio, o grupo empresarial financiador das obras da nova marginal prevê construir um casino. Na foz do esgoto, o jogo será, assim, outro. Quiçà seja esse, afinal, o sentido da mensagem do slogan oficial. «Ainda falta andar muito / mas estamos lá a chegar».

Picanha angolana

«How many roads». Quem sabe!?

sábado, 10 de maio de 2008

Política de rally

Um destes dias assisti no principal canal de televisão daqui, TPA, a uma nota de reportagem apresentada por um mulato de voz grossa, carapinha a entrar pelas patilhas e tentando imitar a histrionia do Artur Agostinho, sobre a atribuição de viaturas e subsídios pelo governo provincial de Luanda a diversos sobas. Estes líderes tribais habilitavam-se aos pópós no decurso do patriótico dever de instruirem as suas populações, muitas delas remotas, sobre os benefícios do recenseamento para as eleições legislativas de Setembro próximo. Não pude deixar de imaginar o nosso Sócrates a oferecer jipes a todos os presidentes de junta em 2009. No ecran angolano, era evidente a dificuldade dos anciãos em se equilibrarem ao mesmo tempo que miravam interrogativos os espadas dispostos à sua frente e se amparavam numa espécie de cajados que o speaker de serviço apresentava como símbolos do exercício do histórico poder tribal. Aqui, como certamente em muitos outros lados, a luta partidária parece já não se contentar em confinar-se à ideologia das camisolas, bandeiras, bonés, sacos, canetas, isqueiros, pins e todos os packs doutrinários que se habituou a distribuir em comícios e bebícios. Interroguei-me se o velho Marx não seria capaz de alterar uma sua frase batida, actualizando que também a política é o ópio do povo. E que só mesmo os seus inebriantes meandros seriam assim capazes de transformar velhos sobas em pilotos de rally.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Post ao desafio (da Laura num comentário no último)

Consta que Bob Geldof cantou em Lisboa umas monstruosidades sobre Angola, o que desde logo provocou a recusa ad-eternum da emissão do seu visto de trabalho por aqui e pôs os banqueiros anfitriões do Banco Espírito Santo a dorir os joelhos numa prece aos «criminosos». Pudera, sendo o BESA o banco mais rentável cá do sítio, mesmo que tendo apenas a quarta maior rede de balcões, lá saberão porque tiveram de se desdobrar de imediato em desculpas pelo engano no repertório do lord & rocker britânico. Sir Bob terá então descoberto que na baía de Luanda, que todas as manhãs despeja no meu jogging os mesmos maus cheiros que pelos vistos atraem os criminosos, as casas são caríssimas e que tudo isso será culpa de uma sociedade local de empreiteiros que dará pelo nome de Eduardo dos Santos & Cª. Mais do que isso, Geldof sentiu-se mesmo ofendido com o facto da terceiro-mundista Luanda ousar pretender destronar a imperial Londres do topo das cidades mais caras do mundo. E sem pobres e criminosos, supõe-se. Mas parece que o ex-Boomtam Rat se terá confundido com os preços pois que os que este desafio me obrigou a coligir referem que o metro quadrado dos escritórios arrendados em Luanda anda à volta dos 400 dolares por ano enquanto o de Londres ronda os 1.500. Pelo meio ainda andará o Dubai. Curiosamente, o edifício mais caro cá no burgo até é propriedade da British Petroleum, que consta ter como accionistas membros da Coroa. My God, are they criminals? Há muito quem pense, não apenas por estes lados, que certos crimes bem que poderão ter sido importados. Um destes dias ouvi de um angolano que dobrava o jornal. «Mais uma má notícia para Angola: foi descoberta uma nova grande jazida de petróleo».

sábado, 3 de maio de 2008

Estória de melgas

Dez dias, felizmente uteis e por isso com equivalência a mais de duas utilitárias semanas à espera de um visto de regresso a Angola, que praticamente foram usados a acampar nos menus dos restaurantes lusos. A novidade, para quem já desfalecia por temer perder a memória de alguns gostos, é que as tripas do Abadia, os rissóis do Galiza, o cabrito do António, as massadas de peixe do Praia-Mar, as empadas do Natário, os assados do Manel e toda a caça do Recanto se mantêm deliciosas. E até mesmo a Super Bock, que me desculpe a Cuca pela breve traição, mantém os seus elevados padrões de tolerância. Como sempre, no regresso, relembro a primeira chegada a Luanda. Sem os polícias de agora, à porta do aeroporto, restringindo os acessos a todo o género de melgas, principalmente aos que logo apareciam junto ao tapete rolante que faz de passerelle às malas dos recém-chegados e que se faziam de chauferes dos carrinhos de mão levando as bagagens como reféns. Há um pouco mais de seis meses atrás foi assim. Depois do autocarro nos deixar aterrados naquela sauna de gente de todas as cores, línguas e credos que procuravam saber a origem de tantas filas que se entrecruzavam para desaguar em nenhum posto visível, malas a marcar lugar enquanto se vai algures a um balcão buscar mais um impresso para provar ter as vacinas das doenças tropicais em dia não vá desvirtuar-se a pureza dos genes da malária local, voltar a procurar a fila legítima saltando por cima do bowling das bagagens, retomar a que segue um letreiro que diz Cidadãos CPLP, helàs, mas afinal inundada por uma mistura de trabalhadores russos e indianos e responder vir de Portugal como consultor de uma empresa local ao funcionário do posto de controlo de passaportes enquanto ele se mantinha vidrado no ecran do computador para logo depois sair da abstração, procurar com a mão o martelo e trespassar a folha virgem do meu passaporte com o borrão preto de um carimbo barulhento. A partir daí, virei paizinho. Que era o que me sussurrava quase ao ouvido, com o intuito de estrear em Angola os poucos dolares que eu comprara novinhos no banco, o mesmo melga da passerelle das malas, ao mesmo tempo que tentava controlar a rumo do carrinho onde eu trazia as minhas duas, mais a do laptop a tiracolo. Assumindo um semblante de vai-chamar-pai-a-outro, dispus-me a recusar a interesseira ajuda e a empurrar a minha carga dali para fora. Mas eram demasiadas as fardas fronteiriças, pelo que ainda tive de parar para mostrar o passaporte, o bilhete do avião e o tal impresso sanitário mais umas três ou quatro vezes, tantas quantos os flic-flac que tive de inventar ao convocar todos os documentos exigidos ao mesmo tempo que rechaçava as investidas do melga. Saído finalmente da área internacional do Aeroporto 4 de Fevereiro, que é o nome por que é conhecido aquele amontoado de pavilhões raquíticos e sem ar condicionado ao lado de uma pista de aviação, tentei logo verificar em que esvoaçante folha A-4 constava o meu nome junto ao da empresa responsável pela minha vinda e que ali deveria ter um motorista mais uma corrida para um outro porto mais seguro. Nada. Uma ligeira (para afastar suspeições de insegurança) reconfirmação pelos placards da suspeita da minha fraca cotação sócio-profissional por aquelas paragens fez-me decidir avançar até à esquina mais próxima. A partir desse momento, abandonei-me ao melga e acabei por deixá-lo tomar o controlo do carrinho das malas. Afinal, ele até estava a conseguir afugentar com golpes de eu-fui-o-primeiro-a-chegar outros tantos que se atropelavam para oferecerem aqui ao paizinho diversos serviços de guarda, pessoal, das malas e certamente também da minha carteira. Finalmente apareceu-me o motorista, que inaugurou ali mesmo o refrão de uma cantilena que a memória destes meus seis meses de Angola já registaram por milhares de vezes: atrasei-me por causa do trâfego. Bagagem posta no carro, já sentado no lugar do morto, vi o motorista sair para pagar o parking deixando atrás de si a porta aberta. Foi a minha desgraça. Um grupo de assistentes, poucos momentos antes, da cerimónia de recompensa do esforçado melga condutor de carrinhos, acercou-se de mim com o claro intuito de testar a minha solidez financeira. Confesso que seis olhares famintos de liquidez, dez mãos a tocarem os vidros e duas outras já alojadas na pega da porta de trás do carro onde repousava uma das minhas malas convenceram-me. Ao motorista regressado do pagamento do ticket jamais lhe poderia ocorrer que acabara de perder a gorjeta da corrida. Chegado ao hotel, desfazer as malas e separar as roupas pelos armários do quarto ainda seriam tarefas bem sucedidas. Já a água saída para um duche a conta-gotas e shampoo retirado à toalhada, os três elevadores avariados, a frenética descida de vinte e um andares por uma escadaria rançosamente molhada e o ingresso no último minuto previsto para o horário de encerramento de um pequeno almoço continental já amesentado para almoço e por isso já só a albergar umas poucas e muito mirradas peças de fruta, sumos industriais e ovos mexidos à fartazana dariam ao meu primeiro dia de trabalho em Luanda o tom tão colorido quão pastelado com que a minha vida tem vindo a ser pintada por estas bandas do mundo. Tudo o resto será, certamente como tem sido, estória.