quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

A céu aberto

Por uma vez, consegui sair de Luanda. Rumei ao sul, passei a foz do Kuanza e desaguei o meu feriado numa enorme praia que albergava também uma pequena comunidade de pescadores. Um dia no paraíso, deitado sob a sombra das copas de uma árvore plantada a dois metros da linha da maré, sentindo o odor ocre do cardume que expirava na areia o excesso da faina, a alegria das crianças no sorriso das ondas, o cálculo sobre o local de queda da bola de futebol maltratada pelos desastrados golpes de vólei de ecléticos desportistas de fim-de-semana, o calor da água estranhamente mais quente que o do sol, o passeio pela praia por onde se estendiam barcos deitados de barriga para o ar, o reconhecimento das falésias alentejanas já a brotar casas de dois andares, as matilhas de cães atrelados às carcaças dos peixes grelhados pelo abandono, o pânico às arrecuas para as tocas dos caranguejos tementes da vibração de passos na areia, o namoro envergonhado de fuga à mão-dada de alguns tugas seniores no intervalo da construção civil com rapariguinhas que parecia sonharem-se do shopping, a salitra do mar a salgar a pele no conforto de um prazer que se julgava poder recuperar apenas daí a alguns meses. Ainda antes de chegar o final da tarde, o regresso pelas estradas vazias de trânsito, policiadas pelos troncos em figura de gente dos embondeiros e restantes comparsas de tantas ramadas que já à ida me haviam feito cegar os olhos de tanta limpidez. Mal entrei em Luanda, esse novo significado da wikipédia para selva urbana, apercebi-me que voltara ao esgoto. Que se mantém sem direito a abrir-se a qualquer céu.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Kinaxixi

Sempre que passamos num dos acessos ao largo do Kinaxixi e somos obrigados a parar no par de semáforos seguidos que lá tentam controlar a selvajaria do tráfego automóvel, sou quase sempre assaltado pela mesma imagem. Como se fora uma explosão. Ao lado dos postes dos semáforos, ora num ora noutro, outras vezes em ambos, costumam estar duas mulheres mutiladas. Uma, mais velha, tem apenas os cotos das pernas e transporta-se numa cadeira de rodas. A outra, mais nova, tem uma das pernas serrada até um pouco abaixo do joelho. Para além do que não têm, assemelham-se por serem ambas mães de bebés. Um deles, talvez com menos de um ano, costuma acompanhar a mãe que lhe dá de mamar no duplo colo da cadeira de rodas. O outro, já maior mas ainda a arriscar os primeiros passos, só aparece de vez em quando por ali. E quando aparece, a mãe, que não deve ter mais de vinte anos, esquece o peditório e fica no passeio a brincar com ele. Vi-os, num destes dias, no local de sempre, divertindo-se a jogar às escondidas. Ela a saltitar na única perna, ziguezagueando entre os postes de ferro que sustentam a publicidade a uma companhia de seguros e ele a esbracejar de alegria na perseguição dos passos da mãe, um e outra completamente alheados do resto do mundo que se transportava mesmo ali ao lado, no tráfego de ar condicionado que insiste em atropelar as encruzilhadas do Kinaxixi. Como o semáforo estava aberto, passamos sem ter de descer o vidro do carro. No entanto, o brilho daquela imagem fugaz da brincadeira entre mãe e filho acompanhar-me-ia no resto do meu dia. E, por uma vez, não tive de me interrogar sobre a felicidade que aquela mãe haveria de comprar com uma nota de kwanzas.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Outros vôos

O homem deixou de arrastar as duas grandes malas de viagem e estancou ali. Mirou os elefantes, os leões e o bando de flamingos rosas que se banhavam num riacho amarelo e pareceu concordar com o lugar. Tirou os sapatos, fez o sinal de cruzar as pernas enquanto se agachava e deixou-se cair no chão, mesmo defronte do que o fizera sentar-se. Emparelhou as mãos em sinal de prece e levou-as a tocar a testa, a cara e o peito, ao mesmo tempo que se vergava repetidamente para a frente até tocar com a cabeça no chão. Deixou depois cair os braços em redor do corpo, fechou os olhos e deixou-se ficar assim, em sinal de meditação. À sua frente, os animais que insistiam em pastar na parede pintada eram o único sinal sedentário daquele aeroporto que fervilhava de pessoas, malas, carros-de-mão, raças, línguas, passaportes, destinos, rotas, fusos horários, urgências, fugas, sonhos, quiçà, pesadelos. No meu relógio eram 2h30m de uma tarde de Joanesburgo. Fiquei assim com mais uma prova da relatividade do tempo e dos lugares e de que haverá sempre uma outra hora e uma outra Meca algures espalhadas por este mundo com mais do que um dono e que consideramos, afinal, nosso.