sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Um problema de escassez

Governo pede cautelas na utilização dos "escassos" recursos do Estado. Talvez que não fosse má ideia que a população angolana passasse a discutir porque é que estes recursos serão, agora, assim tão escassos.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

A saga continua

'Angolagate': 500 mil euros gastos em acompanhantes. Podiam não saber tocar piano ou falar francês mas os gatos angolanos do Angolagate sabiam reconhecer os pergaminhos da nobre arte de servir café e chá. Daí terem premiado as meninas francesas que os ajudaram a descobrir no Louvre o prazer da observação do formalismo das linhas das esculturas etruscas do século VI a.c., a decifrar o mimetismo do túmulo de Tutankamon ou a pôr legendas nas molduras dos quadros dos velhos pintores flamengos com a oferta de automóveis e de apartamentos afiançados. Creio bem que terá sido esta sua conhecia veia artística que os livrou do banco dos réus. Chapeau.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Voto nesta

Esta petição pública chegou-me por correio electrónico. Tem-me sido difícil resistir à sua subscrição. Sobretudo por dever patriótico.

ASSUNTO: URGENTE - RAPTO DE DEPUTADOS
A Todos os PORTUGUESES
Precisamos da sua ajuda!!!
Grupo armado auto-denominado "Nortada" raptou esta manhã um grupo de deputados que se encontrava nos gabinetes da Assembleia da República (como ocorreu às 11 horas não estavam lá muitos).
Estão a exigir o pagamento de 15.000.000,00 euros em troca da sua libertação.
Se não for pago dentro de 24 horas, vão regá-los com combustível e queimá-los vivos.
É imperativo organizar uma colecta para receber ajudas !!!!
Conseguiu-se até agora:
- 1580 litros de gasolina Sem Chumbo 95- 1320 litros de gasolina Sem Chumbo 98- 1250 litros de gasoleo- 175 de gasoleo agricola- 78 caixas de fosforos- 21 isqueiros- 1000 acendalhas- 337 botijas de gás
Não mandem álcool, pois o mesmo pode vir a ser consumido pelos próprios deputados.
Aceitam-se tambem barris de pólvora.
Se você apagar esta mensagem, é porque não tem coração... Por favor, leia e ajude...
PORTUGAL PRECISA DE SI !!!

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Serviços de limpeza

Tribunal Constitucional extingue formalmente vinte partidos. A democracia angolana acaba de eliminar todas as forças políticas que obtiveram menos de 0,5% dos votos nas últimas eleições. Curiosamente, a filosofia deste serviço de limpeza assenta mais nos alicerces de Darwin do que nas estacas de Marx. Numa prova de que o regime actual crê nas virtudes da evolução e aposta, assim, na selecção natural dos futuros membros.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Rtpi-análise

Do programa que acabei de ver na RTP Internacional, «As Escolhas de Marcelo», que tinha a particularidade de o ter em Luanda, retive três coisas. Que a entrevista foi pré-gravada de tarde. Que Marcelo se referiu ao regime democrático angolano como não estando «ainda consolidado». Que a energia falhou uma vez durante a transmissão. Enfim, pouca coisa para merecer um post. Azar. Logo hoje que eu me preparava para parecer um blogue de primeira linha e fazer a análise das análises do prof. Marcelo.

Um País de almirantes

De vez em quando, o Terceiro Mundo ocupa o convés de uma piroga e faz-se ao mar, seguindo em encruzilhada as correntes frias que sabe fazerem-no subir pelo Atlântico em direcção a um local cujos indígenas se habituaram a chamar Europa. De quando em vez, lá chegado, a sua conhecida capacidade de dissimulação facilmente o faz confundir-se com um seu parente afastado que, habitualmente, faz gala de uma aristocrática e falsa superioridade. Daí que não espante lerem-se títulos como este na primeira página dos jornais de Portugal. Marinha tem mais almirantes que navios.

25 de Janeiro

Tirando as dos meus, nunca fui de decorar datas de aniversários. Muito menos de cultivar essa falsa simpatia de quem coloca na agenda os dias de anos de amigos, conhecidos, vizinhos, colegas de trabalho ou, até, clientes, para lhes ligar logo às 9 horas da manhã, na azáfama do cumprimento da primeira tarefa do dia, a desejar-lhes feliz-aniversário-e-que-seja-por-muitos-anos para receber do outro lado um resmungo de obrigado-e-que-tu-possas-cá-estar-para-contá-los. O que nem sempre será verdade quando sabemos que o parabenizante, como se diz no Brasil, quer afinal continuar a sentir que aprisiona a nossa intimidade pelo menos uma vez por ano e o que nós queremos, em contrapartida, é que ele vá colher urtigas até ficar com as pontas dos dedos impróprias para folhear a agenda à procura da próxima vítima aniversariante. Dito isto, confesso, no entanto, ter, desde miúdo, uma fraqueza agendada. O dia 25 de Janeiro. Que é a data de aniversário do grande Eusébio da Silva Ferreira, o Pantera Negra, o maior futebolista de sempre, que faz 67 anos hoje. E estou bastante chateado porque desde as 9 da manhã que tenho vindo a tentar ligar-lhe e ele continua com o número interrompido.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Amizade colorida

Angola já é o maior fornecedor da China, à frente da Arábia Saudita. Tenho ouvido, por aqui, a anedota de um pai angolano que entra esbaforido num consultório pediátrico levando nos braços um bebé com algumas semanas de vida. «Senhor doutor, o meu menino não abre bem os olhos praticamente desde que nasceu!» Após o exame da praxe, resposta do médico ao falso progenitor. «Meu caro, olhe que quem tem a obrigação de passar a abrir bem os olhos é você!» Há quem considere que é isto mesmo que Angola tem de fazer. Mais cedo do que mais tarde. Antes de passar a ficar com os olhos-em-bico com a oleosa sofreguidão de imaginar o seu futuro plantado por pomares de árvores das patacas que, afinal, poderão não passar de eucalíptos.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Bush e o sucessor

Não deixa de ser interessante verificar que o mesmo povo que escolheu, agora, Barak Obama tenha escolhido, antes, George W. Bush. Essa será a grandeza, porventura suicidária, da América. Retenho o sentido de uma frase dita num inquérito de rua da CNN por uma cidadã anónima. A qual, se calhar, nem blog terá. «Espero que agora possamos impor-nos ao mundo pela natureza da nossa cultura como nação e não pelo nosso poderio militar». Acho boa ideia.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Como funciona o mercado de acções

Estava-se no Outono e os Índios de uma reserva americana perguntaram ao novo Chefe se o Inverno iria ser muito rigoroso ou se, pelo contrário, poderia ser mais suave.
Tratando-se de um Chefe Índio mas da era moderna, ele não conseguia interpretar os sinais que lhe permitissem prever o tempo, no entanto, para não correr muitos riscos, foi dizendo que sim senhor, deveriam estar preparados e cortar a lenha suficiente para aguentar um Inverno frio.
Mas, como também era um líder prático e preocupado, alguns dias depois teve uma ideia. Dirigiu-se à cabine telefónica pública, ligou para o Serviço Meteorológico Nacional e perguntou: "O próximo Inverno vai ser frio?"
-"Parece que na realidade este Inverno vai ser mesmo frio!", respondeu o meteorologista de serviço.
O Chefe voltou para o seu povo e mandou que cortassem mais lenha. Uma semana mais tarde, voltou a falar para o Serviço Meteorológico:
"Vai ser um Inverno muito frio?"
"Sim", responderam novamente do outro lado, "O Inverno vai ser mesmo muito frio!".
Mais uma vez o Chefe voltou para o seu povo e mandou que apanhassem toda a lenha que pudessem sem desperdiçar sequer as pequenas cavacas. Duas semanas mais tarde voltou a falar para o Serviço Meteorológico Nacional:
"Vocês têm a certeza que este Inverno vai ser mesmo muito frio?"
"Absolutamente!", respondeu o homem. "Vai ser um dos Invernos mais frios de sempre!".
"Como podem ter tanta certeza?", perguntou o grande Chefe.
O meteorologista respondeu: "Os Índios estão a aprovisionar lenha que parecem uns doidos!"

É assim que funciona o mercado de acções.

Tinha esta história depositada no meu e-mail. Como não a considero especulativa, decidi publicá-la aqui.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Kissing You - Des'ree

O Anónimo (oanonimoanonimo.blogs.sapo.pt) está a publicar as canções de amor favoritas dos seus leitores. Escolhi a voz fabulosamente contida, ou contidamente fabulosa?, da Des'ree nesta música, que me parece, simplesmente, contida.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

domingo, 18 de janeiro de 2009

Saiu-me a lotaria!

You emerged a winner in UK NATIONAL LOTTERY held on the 14th Jan 2009 and therefore entitled to a substantial amount of £250,000 GPounds, Dell Pentium 4 Laptop, company T-shirt, Face cap from the U.K. National Online Sweepstakes Promo, provide the datas. Name: Address: Age: Occupation: Country: Tel: to claim your prize. Confesso-me. Sou um mãos largas. Acabo de recusar receber a Lotaria Nacional do Reino Unido. Que venci mesmo sem ter qualquer cautela, ou bilhete, ou de ter andado a fazer cruzinhas num papel. O prémio, que me foi secretamente anunciado via e-mail, é de 250 mil libras esterlinas. Equivalente a 280 mil euros, 360 mil dólares, 27 milhões de kwanzas. Convenhamos que é dinheiro. O que somado ao Pentium e ao restante pack têxtil permitir-me-ia umas boas férias em Portugal. Quiçá, até esquiar nas ruas do Porto. Mandei-os às malvas. Trash. Se calhar fiz mal. Espero que o anunciante, PRMO, não se chateie. E volte à carga com um prémio verdadeiramente irresistível. Sei lá, um lipstick igual ao do Cristiano Ronaldo, por exemplo.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Um grande romance

Angola tem tudo para grandes enredos romanescos. Um país que procura recuperar das suas duas identidades, da subalterna, tecida nas várias décadas da colonização e da autónoma, retalhada por trinta anos de guerra civil. Um povo de várias tribos que sempre mostraram fraca resistência à integração numa só, por obra e graça globalizadora de uma pequena esquadra de marinheiros tugas que por aqui amarou há séculos atrás. Um sistema político ocupado pelos vencedores das várias guerras, batalhas e guerrilhas em que o país se viu envolvido, algumas delas fomentadas por eles mesmos. Uma economia controlada pelos mesmos generais, políticos, praças e paisanos, que se viciaram em ocupar os tempos livres em jogos com regras cada vez mais parecidas com as do Monopoly. A extrema desigualdade entre as minorias, uma elite predadora de ricos, influentes e poderosos e o mais que maioritário cocktail de remediados, gasosados, pobres, analfabetos, miseráveis e tudo-junto. A posse de um maná muito procurado e de outros ainda escondidos ou inexplorados, que lhe tem permitido ocupar o espaço de um pequeno oásis de fartura num universo faminto e em reboliço. A invasão, nalguns casos ameaçadoramente gulosa, de gente dos quatro cantos do mundo, trazendo na bagagem hábitos, ritmos e perspectivas de vida pertencentes a um século que por aqui nunca passou. Os caldos, de pedra, de carne, de letras, de todas estas vivências e percursos, paralelos, transversais, oblíquos, que acabam por entrecruzar as pessoas e as suas expectativas, sonhos, afectos. E os sucessivos cortes no tempo e no espaço que tudo isto provoca nas vidas e nos destinos destes personagens em potência, que somos afinal todos os que por aqui andamos, que habitam este romance ainda não escrito, por aguardar alguém que traga no olhar a sagacidade de sentir este enredo e o saiba afiar na pena.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Ausente & passado

O que se faz quando nos interrompem as conversas, nos deixam a falar sozinhos, gaguejam quando os contactamos, hesitam quando nos atendem, não nos levam aonde queremos ir ou, simplesmente, nos largam no escuro? E ainda por cima insistem que estão sempre connosco. Dois dias seguidos sem acesso à net? E ainda se atrevem a dizer que estão sempre presentes? Irra. Bora movinet para outro lado.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Uma história mal contada

A globalização tem destas coisas. O que num canto do mundo é visto como discriminação, num outro pretende ser nivelador. A maioria das deputadas portuguesas, por exemplo, considerou discriminatória a fixação de quotas femininas no Parlamento. Por aqui, olha-se como niveladora a obrigatoriedade de empregar angolanos em todas as estruturas directivas das empresas petrolíferas. Como se as empresas privadas ganhassem alguma coisa em empregar expatriados ao dobro, triplo, quadruplo, ou até mais, do custo de um trabalhador local se com produtividade idêntica. Não há dúvida de que é sempre mais fácil decretar estas coisas do que investir na exigência. Mundos. Separados, creio, apenas pelo tempo. O que as mulheres tugas recusam por sexista, os angolanos aproveitam como esmola. Para, porventura, passarem a sonhar com mais um daqueles espadas em segunda mão importados dos Emiratos que fazem morrer de inveja os vizinhos. Os que não terão leis proteccionistas para salvaguar a evolução na carreira. Ou no desemprego.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Viajar de cuecas no Metro - No Pants

Sociologia de cuecas.

Apendicite luandense

Luanda é a cidade mais cara do mundo. Nunca pensei ter o privilégio de viver na cidade mais cara do mundo. Muito embora já me tenha imaginado, no passado, a trabalhar em Wall Street, em Cannary Wharf ou em La Defense. Jamais em Luanda. Uma partida pregada por uma globalização que se tem mostrado danada para a brincadeira. Talvez, também, por isso, consta que nova-iorquinos, londrinos e parisienses estarão estupefactos com esta ultrapassagem luandense pela direita. Hábitos de desrespeito por regras de trânsito à parte, há quem afiance que o regime angolano andará satisfeito com mais esta ascenção ao que julgam ser o podium mundial. Depois da mais bonita bandeira e do mais lindo hino, agora, a cidade mais cara. Pena o tropeção nos preços do crude. E o trambolhão na candidatura à mais alta taxa de crescimento do PIB. Entretanto, depois da surpresa, sobreveio a curiosidade. Consta já que, franceses, compararão a Torre Eiffel à do prédio inacabado do Kinaxixi, ingleses, o bairro de Kensington ao da Samba e, americanos, a Estátua da Liberdade ao mausoléu de Agostinho Neto. E, também, que o mundo inteiro se interrogará agora sobre o sentido de um velho ditado tuga. «O que é barato sai caro e o que é bom custa dinheiro». E, apêndice angolano, também muita gasosa pelo meio.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Vidas em cacos

Cento e trinta e cinco feridos com cacos de garrafas foram atendidos nos Bancos de Urgência dos hospitais do Prenda, Josina Machel e Américo Boavida, em Luanda, no primeiro dia de 2009. Uma das mais letais armas de ataque em Luanda, logo a seguir às de fogo, são as garrafas partidas, vulgo local cacos de garrafa. Há-os de todos os modelos e para todos os gostos. Desde os populares castanhos e made in Portugal tamanhos médios, Sagres, Cristal e Superbock, que apresentam a finura dos recortes tipicamente latinos, dada a irregularidade dos bordos quando partidos contra a parede mais próxima. Passando pelos verdes alemães, o Heineken na versão mais pequena mas mais maneirinha e facilmente disfarçável, por exemplo, no bolso de trás das calças e o Grolsch, um modelo mais avantajado e tilintante pelo badalo da rolha de porcelana, sendo ambos extremamente fiáveis pelo rigor e disciplina nos cortes dos seus vértices de vidro. Até à mais-à-mão oferta local, onde a Cuca lidera, muito embora mais pelo contributo na fase de pré-preparação da luta, aquecida pelo menor preço e maior consumo, do que pelo tamanho atarrancado e vidro adelgaçante, que lhe retirarão a acutilância dos mais pontiagudos da concorrência. De acordo com especialistas do sector, o mais longilínio Superbock será a referência deste mercado, pelo equilíbrio entre tamanho e textura, o que permitirá ao utilizador uma acrescida destreza no acto de transfornar a bebida em cutelo. Diversas carótidas examinadas nas morgues locais têm confirmado isto mesmo.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

O meio

Indubitavelmente, o meio faz o homem. Também, o escritor. Talento e inventiva à parte, escreve-se mais e, quase sempre, melhor quando o meio apela. Foi assim na Europa berço-da-civilização-ocidental, antes, durante e depois das grandes matanças, na Rússia pré e post gulag, na América Latina, durante a longa noite dos generais, na sempre hiper-activa América farol-do-mundo e um pouco por cada canto do planeta onde os ratos não têm permissão para invadir bibliotecas e, de alguma forma, o meio se faz à escrita. Actualmente, por exemplo, Angola. Este meio, este povo, esta vida, outros povos, outras vidas, esta pressão dos contrastes. Tivera eu tempo e disponibilidade para me internar neste enredo e era menino para começar hoje mesmo a escrever um romance.

Saudades do rectângulo

Carta de mãe (alentejana)
Mê querido filho,
Ponho-te estas poucas linhas para saberes que estou viva. Escrevo devagar porque sei que não gostas de ler depressa.
Se receberes esta carta, é porque chegou. Se ela não chegar, avisa-me que eu mando-te outra.
Tê pai leu no jornal que a maioria dos acidentes ocorrem a 1km de casa. Assim, mudámo-nos para mais longe.
Sobre o casaco que querias, o tê tio disse que seria muito caro mandar-to pelo correio por causa dos botões de ferro que pesam muito. Assim arranquei os botões e puse-os no bolso. Quando chegar aí, prega-os de novo.
No outro dia, houve uma explosão na botija de gás aqui na cozinha. O pai e eu fomos atirados pelo ar e saímos fora de casa. Que emoção: foi aprimeira vez em muitos anos que o tê pai e eu saímos juntos.
Sobre o nosso cão, o Joli, anteontem foi atropelado e tiveram de lhe cortar o rabo, por isso toma cuidado quando atravessares a rua.
Na semana passada, o médico veio visitar-me e colocou na minha boca um tubo de vidro. Disse para ficar com ele por duas horas sem falar. O teu pai ofereceu-se para comprar o tubo.
Tua irmã Maria vai ser mãe, mas ainda não sabemos se é menino ou menina, portanto não sei se vais ser tio ou tia.
O teu irmão António deu-me muito trabalho hoje. Fechou o carro e deixou as chaves lá dentro. Tive que ir a casa, pegar a suplente para a abrir. Por sorte, cheguei antes de começar a chuva, pois a capota estava em baixo.
Se vires a Dona Esmeralda, diz-lhe que mando lembranças. Se não a vires, não digas nada.

Tua Mãe Marta
PS: Era para te mandar os 100 euros que me pediste, mas quando me lembrei já tinha fechado o envelope.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

A realidade da ficção

Sensação estranha esta de se ser testemunha da fuga de um personagem de um livro que se leu e que, de repente, se apresenta, de carne e osso, à nossa frente. Ou, como neste caso, a nossos pés. Com a carne e com os ossos descritos no livro donde descarnou. Aconteceu isso um destes dias, próximo da praça do Kinaxixi. O personagem era Simão Kapiangala, saído do livro de Pepetela, «Predadores». Ex-guerrilheiro das FAPLA, vitimado na guerra civil por uma mina, nunca perdoou ao médico cubano a amputação das pernas e do braço direito. «...Porquê não me deixaste morrer, bastava fumares um cigarro a mais... bastava mesmo só acabares a ponta de cigarro que tinhas nos dedos, para a mina ter completado a sua obra, muito melhor que ficar agora assim...». Sobrevivia, sobrevive?, de esmolas na rotunda do Kinaxixi, quando não vinha, virá?, a polícia com preocupações sanitárias e o levava, levará ainda?, e a outras vítimas de poliemielites, minas e mutilações várias, até «...umas barracas longe do centro, onde davam rações de combate para comerem durante dois dias e depois os esqueciam para morrerem mais depressa.» Demorava depois a regressar às ruas de Luanda, era até o último a chegar, mas chegava sempre, «...se enrolando para rebolar sobre o asfalto incandescente». E quando as dores lhe invadiam o corpo, «... um relâmpago lancinante que lhe atravessava a cabeça como rasto de bazooka», Simão toureava os carros a meio da via «...levantava o braço esquerdo no ar, gritava para os motoristas, me mata já, passa por cima de mim...» e «...por vezes se punha mesmo um pouco mais para o lado, suicida, obrigando os carros a fazer um desvio pronunciado, esquivando o corpo oferecido em redenção.» O Simão que agora encontrei não se põe a meio da via, antes fica estacionado no separador central, junto ao semáforo que controla uma das entradas na praça, à espera que os carros parem para lhes bater na porta com os nós dos dedos sobrantes e para obrigar os motoristas distraídos a abrirem o vidro e a baixarem os olhos para o barulho fantasma. Perante este e outros tantos quadros que se vêem expostos por aqui, nem sempre previamente emolduráveis por letras, é difícil racionalizar o esmolar da consciência, pelo que me tenho limitado a poupar de seguranças, arrumadores, paquetes, polícias e outros pedintes mais reivindicativos.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Esquemáticos

CGD. Dois altos quadros reformados por invalidez estão na concorrência. Nos meus primeiros tempos de Angola, assisti a uma apresentação da realidade do país a um grupo de investidores estrangeiros feita por um consultor sul-africano há muito aqui estabelecido. Estranhei que, depois de referir que o velho edifício jurídico-administrativo era herdado da colonização portuguesa, afiançasse que a prática generalizada de esquemas para contornar a legalidade tinha igual apadrinhamento. Gravei isso como uma caluniosa injustiça, convicto da proverbial dor-de-corno sul-africana. Confesso que, de quando em quando, vou perdendo a fé.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Maior que o Nobel

Um atípico dia em Cabo Ledo, nublado, chuvoso, fresco, ventoso, grandemente passado sob um toldo de palha a experimentar-se como guarda-chuva, a ida à água para molhar apenas os tornozelos e o «Livro de Crónicas» que sai, pela enésima vez, do meu saco de praia para que possa mergulhar no reconfortante oceano de palavras de António Lobo Antunes. Não conheço ninguém que escreva tão bem quanto Lobo Antunes. E que acrescente às palavras, às frases, à narração, ao ritmo, aos personagens, ao quotidiano deles, aos sentimentos, às figuras de retórica, aos sentidos de tudo isto junto, duplos, triplos, a plasticidade que faz com que o que escreve nos surja, afinal, como um filme projectado. Leio Lobo Antunes desde «Memória de Elefante», isto é, desde o início e, curiosamente, nunca retive uma história a qualquer um dos seus cinco primeiros livros, que li, ao tempo, seguidos. Pelo contrário, fiquei sempre com o tal filme, o mesmo filme, como se fora autor de uma obra só, um grande romance editado em vários capítulos com nomes próprios. Já nos «Livro de Crónicas», que tem três edições, é possível isolar histórias, pessoas e enredos. Os personagens, algumas vezes confundidos com o narrador, tornam-se mais precisos, absurdamente humanos, como o são as pessoas e os ambientes em Lobo Antunes, seguindo o mundo e a geografia donde vivem, quase sempre nos arredores de Lisboa. Leio o «Livro de Crónicas» como se diz dever ler a Bíblia. Pousado na cabeceira, recomeço a ler do princípio quando chego ao final. Tenho reencontrado o mesmo prazer da surpresa da leitura inicial e continuo a soltar as mesmas gargalhadas, agora nas praias quentes da África onde, curiosamente, ele começou a escrever. Há quem diga que Lobo Antunes já seria Nobel se tivesse namorado uma jornalista literária. Diz-se também que trabalha mais de doze horas por dia, assumindo que um escritor é um trabalhador das palavras. Talvez por isso não tenha tempo para namorar. O que é pena, pois o Nobel só teria a ganhar com isso.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

A minha São Silvestre de Luanda

Como eu já previra, tudo foi feito para que não pudesse vencer a prova. Já antes, mal foi soprada a minha inscrição, foram convocados os melhores atletas do mundo. A frase-de-ordem era clara. O Tuga não pode ganhar. Por uma vez, senti-me na pele dos representantes portugueses no Festival Eurovisão da Canção. Mas nem assim desfaleci na minha firme intenção de ir à luta. Besuntei os pés de creme gordo, troquei as palmilhas das sapatilhas, calcei um par de peúgas rotas para melhor ventilação e apresentei-me já equipado no local de partida. Mas logo aí me apercebi de que já estava montada a marosca. Começaram por me perguntar se estava inscrito na prova principal dos 15 quilómetros ou na Corrida das Famílias, como se fosse possível a um atleta do meu gabarito ficar-se por uma voltinha de 4,5 quilómetros. Depois, recusaram-se a deixar-me partir na linha da frente com a justificação de que eu não era um «atleta credenciado». Perguntei-lhes onde deveria ter tirado a tal credencial e não souberam responder-me. Senti-me vingado quando ouvi os altifalantes anunciarem que os tais atletas credenciados seriam obrigados a usar um chip, certamente que para evitar que fizessem a conhecida batota de atalhar caminhos. Pelo contrário, fiquei isento de tal controle, no que assumi o reconhecimento do meu estatututo de atleta cumpridor integral das distâncias que faço. Quando ouvi o sinal de partida, lá bem no meio do pelotão de concorrentes, encontrava-me ainda a apertar o segundo nó nos atilhos, pelo que, quando parti, os da frente já teriam sobre mim, seguramente, uma vantagem de mil metros. Mas, ao final do terceiro quilómetro, eu já dominava a corrida. Na esteira da escola de atletismo que perfilho, a melhor forma de se aquilatar das condições em que decorre uma prova, ter a melhor percepção dos adversários e, mais, das diferenças de tempo entre cada um, é vê-la de trás. Foi o que fiz. Deixei-me então ficar numa posição de rectaguarda, donde podia dominar toda a corrida. Ao quilómetro sexto, passei por um grupo de atletas algo heterogéneo mas com futuro garantido noutras modalidades. Primeiro, um indivíduo que corria apenas de calções de lycra, bem enterrados no rabo, a que agarrava uma corda que entrelaçava nas ancas e nos ombros e que acabava numa coleira que trazia ao pescoço, donde saía depois um trela que mostrava à assistência, em brasa de riso e aplausos, mal se punha a caminhar com os braços estendidos para a frente, os pulsos para baixo e a língua de fora, a simular uma cadela na companhia de um dono imaginário. Mais à frente, um par igualmente com futuro promissor, com as carapinhas pintadas de amarelo e vermelho, simulando streep-teases contínuos, com as camisas de alças a rodopiarem no ar e a fazerem levantamentos furtivos dos calções, mostrando à assistência em delírio ora uma, ora outra, bochecha do rabo peludo. A partir do décimo segundo quilómetro, já diluída a Gay Parade, o meu domínio da corrida passou a ser quase absoluto, Foi quando detectei ter o carro-vassoura a pouco mais de quinhentos metros. A partir daí e até à meta, situada em pleno Estádio da Cidadela, foi um sprint contínuo. Beneficei também nessa altura da companhia de um mascarado, equipado com um fato de treino completo e capuz enterrado até ao pescoço, que trazia enrolado a tiracolo um pedaço de alcatifa que lhe dava um ar de deslocado explorador da Antártida. Foi então sob uma chuva de aplausos da vasta assistência, que passou mimosamente a incentivar-me com gritos de «Pula», que encetei a minha recuperação, passando por uma multidão de adversários, creio que três, que haviam parado entretanto por causa das bolhas nos pés. Quando entrei no estádio, já com as bancadas vazias, ainda cheguei a tempo de receber os parabéns de um desconhecido, que se interessou pelo meu par de sapatilhas mal as descalcei no relvado. Valeu-me um dos Ninjas presentes, desportivamente armado até aos caninos na guarda da tenda da enfermagem, sem o qual regressaria certamente a casa descalço. Quanto à minha classificação na corrida, ninguém foi capaz de me informar, nem nada saiu na comunicação social angolana. Um boicote absolutamente inexplicável. «Para o ano há mais», dizia-me alguém no final, no que não tenho podido deixar de concordar. E, nessa altura, doa a quem doer, terei já um histórico pergaminho a defender na prova.