segunda-feira, 31 de março de 2008

África Latina

Uma discussão recorrente entre angolanos é a que tem a ver com a convivência conflituosa com os sul-africanos, uma espécie de secular e inacabado tira-teimas do tipo Portugal-Espanha mas com a diferença de que a nossa Ala dos Namorados desmobilizou há mais tempo. É notória esta disputa e bem mais acentuada do lado da tribo branca, que deprecia até à exaustão qualquer naco da realidade dos angolanos que gostam de apresentar como recém-saídos das cavernas. Não há elevador de hotel avariado, empregado de mesa esquecido dos ovos escalfados, motorista atrasado pela confusão do trâfego, pedinte inconformado com a recusa de esmola, engraxador especializado em baínhas ou paquete fiel á língua local que se salvem. Da parte angolana tem restado o gozo de verem a próspera vizinha a braços, desde há alguns meses, com o maior apagão da sua história. Há quem legende este antagonismo, que os de cá devolvem com o devido troco, como uma consequência da mal sucedida invasão sul-africana após a retirada dos portugueses do território. Outros preferem justificar isto com a igualmente divergente história sócio-cultural dos dois países. Perguntava-se-me um destes dias um ex-dirigente político angolano porque razão as empresas sul-africanas, ao contrário da grande maioria das multinacionais, não conseguem ter sucesso em Angola. E como que tomando por assentimento o meu silencioso esforço para procurar um nome, bisou a sentença. Que os vizinhos do sul estariam equivocados quando tentavam comparar Angola ao mais pacífico e civilizado Moçambique, segundo ele, país de maior influência anglo-saxónica. Remate do meu interlocutor: «Nós descendemos dos portugueses, somos latinos!» Depois de ouvir isto, confesso que também eu passei a troçar da apurada organização e disciplina com que os sul-africanos têm organizado as suas filas para comprar velas.

domingo, 30 de março de 2008

O Código das 3 regras

Sempre que me vejo internado neste manicómio que é o trâfego de Luanda lembro-me do meu exame do código da estrada, que preenchi com cruzinhas. Agora, por aqui, não raras vezes cruzo as mãos antecipando uma qualquer colisão, para lá de me interrogar sobre essa coisa das cartas de condução, por aqui tão old fashion quanto os telegramas na era dos SMS. Prioridade a quem vem da direita? Passadeiras para peões? Sentido único? Estacionamento proibido em segunda fila? E em terceira? Nos passeios? Circular pela faixa da direita? Ultrapassar em segurança? Ligar os piscas? Sinalizar seja lá o que fôr? Desconfio que o João Catatau, autor do Código da Estrada do meu tempo, seria atropelado logo na primeira rua à saída do aeroporto de Luanda. Pois por estes lados há uma espécie de versão sintética do best seller dos pré-encartados, ou seja, as regras de trânsito são apenas três, por isso mesmo também conhecidas por prioridades absolutas. 1ª Os taxis de Luanda, cujo cognome, candongueiros, já deveria dizer tudo e que são conduzidos por esgazeados aceleras que em vez de espelhos levam fotos de mulatas nuas nos retrovisores e que resolvem qualquer dúvida sobre prioridades com uma catana na mão. 2ª Os carros da Polícia, cuja pressa em chegarem à vizinhança de locais pródigos nos sectores da restauração e bebidas os leva a ligarem os pirilampos de luz & som como se fosse um ensaio de DJ’s nas vésperas de uma rave party. 3ª Os Volvos azuis escuros, conhecidos por serem exclusivos dos membros do governo, certamente que num derradeiro esforço da actual geração de políticos angolanos para se aproximarem do ideal sueco do Estado Providência. Neste fim-de-semana, congelado no trâfego que tentava fugir da incandescente Luanda, vi um Volvo azul escuro galgar o separador central para a outra faixa, colar-se ao tejadilho um colorido ti-no-ni e arrancar dali a toda a velocidade em contra-mão. Quem ia ao meu lado, incrédulo com o meu espanto, assegurou-me que quem correria sérios riscos seria quem se atrevesse a confrontar aquele xô ministro com uma qualquer quarta regra.

sábado, 22 de março de 2008

Reciclar mentalidades precisa-se!

Tal como Londres com o Big Ben ou o novo Eye, Paris com a Torre Eiffel ou o Sacré-Coeur, Lisboa com os Jerónimos ou as sete colinas, ou ainda o Porto com os Clérigos ou as pataniscas de bacalhau do Abadia, Luanda tem no lixo o seu maior ex-libris. Aliás, o que diferenciará esta das outras capitais é a sua capacidade de replicar ex-libris por qualquer palmo de terreno, seja em terra, no mar ou, necessariamente, no ar. E, no entanto, os angolanos são um povo que nitidamente se preocupa com a aparência, só que, desgraçadamente para a camada do ozono, apenas com a pessoal, pelo que insistim em não incluir o lixo nos respectivos estojos. São assim comuns na vizinhança de quaisquer ruas, avenidas ou auto-estradas, os quadros de pestilentos esgotos a céu aberto, as visões lunares de esventramento de terras e sementeiras de poeira, a colorida sujidade das casotas humanas a que chamam bairros e a democrática decomposição de todo o tipo de carcaças de produtos, de embalagens a carros, tudo isto competindo geralmente com uma anormal qualidade nas roupas ou no calçado dos seus habitantes, quase sempre aparentemente novas e último modelo, mesmo se made in Thailand ou in Vietnam. Ao pé disto, receio até ser confrontado um destes dias com a oferta de esmola por alguém que considere andrajosa a indumentária que utilizo nos meus joggings na marginal da baía de Luanda. A mesma baía que seguramente será o maior reservatório de lixo do país, a avaliar pela quantidade de esgotos que lá desaguam continuamente, num arco-iris de torrentes nojentas que provocam tumultos nos cardumes de peixes famintos, de engodo e de oxigénio, para gáudio das pequenas e certamente cirrosas garças brancas que lá os costumam pastar. Uma outra prova desta inesgotável capacidade de Luanda para produzir detritos está nas brigadas do município que antes de qualquer festividade com presença garantida de notáveis do regime varrem sem pestanejar para o mar os cardápios de lixo que jazem na calçada, solidarizando-se com os vagabundos que por ali habitualmente pernoitam e que há muito se habituaram a esvaziar bexigas e intestinos directamente na baía. Um destes dias, a meio do meu exercício de suor matinal, passei por um militar de um quartel próximo que aproveitou a maré baixa para arrear calças ali mesmo. Vá lá alguém atrever-se a dizer-lhe que foi assim que Angola perdeu a guerra.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Continente sem lágrimas

Como quase sempre, a sauna do tempo angolano ia distendendo os gestos dos comensais no intervalo de mais um domingueiro dia de praia. As nuvens, que parecia quererem brincar à cabra-cega, iam-se interpondo sem pedir licença entre o olhar tórrido do sol e as vaporosas peles morenas que ameaçavam fugir dos bikinis deitados na areia ali próxima. Debaixo dos toldos da esplanada do restaurante, comia-se com os talheres como quem displicentemente tricoteia a malha de uma teia interminável. Na mesa ao lado, que afinal eram várias, corridas como no prolongamento de um jogo de dominó, uma família de cerca de vinte pessoas entretinha-se entre a experimentação da variedade da oferta do menu-buffet regado a cerveja e a decifração do sexo do bebé de uma das três grávidas do grupo. Pelo meio, ninguém ligava ao mais ancião no seu balbucio entredentes, nos intervalos da fumarada com cheiro a espigas que lhe saía do cachimbo e os esforços para não deixar desatarrachar a placa solta que ameaçava fugir-lhe. De repente, um bebé chorou no carrinho estacionadao entre duas das grávidas. Nada de mais banal no meio da maternidade que parecia existir debaixo daquele toldo, a não ser pelo facto de ser o primeiro choro de que me lembro ter ouvido desde que calquei terras de Angola já lá vao cinco meses. Já me haviam avisado: este é um povo que não sabe chorar. Mesmo se com a face mergulhada num vespeiro ou a barriga a destilar de fome nos ecrans da CNN. As mortes de centenas de guerrilhas internas cinicamente militantes, os milhares de desaparecidos que se esfumaram como estatística, a dor do engano da defesa de pátrias de petróleo & diamantes, enfim, a banalidade de crescer genes num continente que se diz perdido entre barris e onças. Quanto ao bebé ali mesmo ao lado, um ligeiro vôo para o segredo do colo da avó pareceu acalmá-lo do calor das peúgas de lã côr-de-rosa às bolinhas que combinavam muito bem com o vestido pintalgado da mesma côr.

sábado, 8 de março de 2008

Amor,

Desta cela de afectos onde tenho habitado nestes últimos tempos escrevo-te para dizer que mantenho o nosso plano de fuga. E que por mais que me tentem vergar à indigência deste dia-a-dia cego, surdo e mudo de todos os sentidos asseguro-te que jamais resvalarei para contar os nossos segredos. Os que vimos trocando há já demasiado tempo para que precisemos de os gravar. Tanto os que estão inscritos nas areias da praia das Caxinas como na de Oostende, os que porventura semeamos junto à capela de S. Felix ou à sinagoga de Tomar, os que fomos enterrando nas cercanias do desalento de S. Teotónio e julgamos reaver na euforia de Amsterdam, os que confidenciamos no aconchego de moules e pastas nas Grand Place ou entre as pulgas-do-mar das dunas de Santo André, entre o mistério enfim de tantas referências de santos e o centro do mundo que foi durante algum tempo aquele abençoado apartamento de Antwerpen. E mesmo que nos tenham visto a calcorrear as ruas de Paris, garanto-te que não conseguirão arrancar-me o código do que procuramos na Eglise de Saint Eustache. Já por mais de uma vez tentaram roubar-me a memória, a que subsiste num círculo de dois metros quadrados em teu redor, mas apenas conseguiram ficar-me com o escalpe. Preservei entretanto tudo o resto, dos teus cheiros de menina, mulher e mãe, da tua pele porosa e aveludada, das tuas mãos finas e sardentas, da sofreguidão com que costumas procurar-me, do açucarado do teu corpo quando o revelo, da calidez húmida do teu abraço que ainda hoje sinto adormecer enfaixado no meu, da sensação de que te ouço chamar-me, ora vê lá tu, aqui, nos sítios e ocasiões mais improváveis. Por precaução, deixei de trazer as tuas fotos na carteira. Não quero que te reconheçam quando olham para mim ou quando eu próprio me vejo ao espelho. Lembro-me do Bergman e daquele casal que celebrava serem cada vez mais siameses porque fecundados no óvulo de uma vida em comum, o que os revelava iguais em cada gesto, da cara, das mãos, da voz, de tudo o que partilhavam. Tenho assim enganado os meus carcereiros. Mais o árido esforço com que tentam convencer-me de que não existes porque não estás aqui, que não te sinto porque estás longe, que não te ouço porque deixaste de chamar por mim, que não te posso tocar porque não me acompanhas nos meus dias. Ignorantes. Não sabem que a cela que construímos é bem mais forte do que a deles.

sábado, 1 de março de 2008

O sorriso do motorista

Costumava conduzir-nos habitualmente com desenquadrada calma e ponderação, duas qualidades deveras desfazadas para um motorista condenado a embrenhar-se diariamente nesta sucateira de chapa batida que são as estradas de Luanda. Fazia-o quase sempre com um sorriso nos lábios, o que nos obrigava a devolvê-lo mesmo quando afiançava pelo telemóvel encontrar-se apenas a cinco minutos de distância do nosso local e afinal demorava mais trés quartos de hora até chegar. Conduzia a carrinha de nove lugares fretada pela empresa ao som de música religiosa, brasileira, com cântinhos que acompanhava entre dentes, sempre com um sorriso de Gioconda nos lábios, ao que eu me interrogava se por imitação de um dos santos do seu altar ou se deles teria recebido um qualquer segredo. Uma manhã calhou-me viajar com um grupo de informáticos recém-chegados cujo entusiasmo depressa resvalou para os refrões das músicas saídas do DVD da carrinha acabando por transformar aquela corrida numa missa celebrada por um coro Gospel. Na primeira vez que lhe comuniquei estranhar a fuga aos standard reggae, hip-hop, rap ou kuduru da sua Angola, mostrou-se um humilde DJ disponível para mudar de repertório. Perante a minha indiferença em povoar os curtos percursos com qualquer tipo de batuque, confessar-me-ia ter sido pastor evangélico numa igreja no Brasil. Há dias apanharam-no em flagrante a roubar uns dólares de uma carteira que uma colega deixara momentaneamente esquecida no carro e foi despedido. Confesso que tenho tido dificuldades em eu próprio me despedir da imagem do gesto. Como pode um pastor de almas, mesmo que de um credo eventualmente minoritário, deixar-se tentar por um punhado de dolares? Aspirará um diabólico Lincoln, Jackson ou Franklin a ser bem mais tentador que Jesus Cristo, mesmo se encarnado numa qualquer versão de professar mirabolantes esquemas de cobranças de dízimos? Pelo sim pelo não nos próximos tempos vou andar mais atento aos gostos musicais de quem me transporta. E passar a desconfiar de certo tipo de sorrisos.