terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Herói de pés-de-barro confessa-se

Nas vésperas do regresso a África após umas férias de Natal prolongadas pela demora na emissão de vistos que acrescentaram a burocracia às delícias das rabanadas e do bolo-rei, encontrei-me com ex-colegas de trabalho desejosos de me ouvirem relatar o que tem sido este desafio angolano. Para lá das questões profissionais, percebi a curiosidade pela ousadia de me ter estabelecido, mais com bagagens do que com armas, por terras dos Cus de Judas. E finalmente descobri uma imagem de aventureiro que até então não sabia ter. Entre pares que se arrastam num carrosel de cargos cada vez mais enclinados, equilibrismos hierárquicos, aumentos-abaixo-da-inflação, anos-que-faltam-prá-pré-reforma, gestão de novos-projectos tão consabidos quão requentados, mais uma interminável porrada de ressabiados novos-desafios, reconheci-me na tela do herói que ousara bater com a porta no nariz da rotina, levantar amarras do tédio do dia-a-dia alcatifado da zona de conforto de cada um e zarpar rumo a um mundo desconhecido mas certamente povoado de aliciantes descobertas e recompensas que, estranhamente para mim, descobri habitar nalgumas daquelas cabeças. Na minha, neste martirizado puzzle existencial que tem sido o meu dia-a-dia, confesso que apenas subsiste uma casa banhada pelo Inverno da Armona, o deserto descalço da praia que se calcorreia em kilómetros de areia atapetada, o apinhado das ondas quentes e tímidas do sotavento, a revisita aos livros de Sartre e aos de todos os outros que vale a pena reler durante os alaranjados fins de tarde das varandas de Tavira, enfim, o calor dos dias perdidos com as minhas mulheres, o tremor das noites empatadas com a mais velha delas e a sensação de vitória de ter sobrevivido à ausência de tudo isto. Coisa pouca para um nomeado para herói, já se vê.

sábado, 19 de janeiro de 2008

Finalmente compreendo Mark Twain

Há cerca de um mês e meio atrás, fui convocado pelo meu chefe para uma visita ao Huambo, cedendo a um convite de um cliente. Partiríamos no dia seguinte, sábado de manhã, do aeroporto 4 de Fevereiro, em Luanda e no avião do nosso anfitrião, um dos mais importantes empresários de Angola. Por razões que não interessarão aqui, essa viagem não se fez. Acabo de ler esta notícia da Lusa e não posso deixar de me lembrar da reacção de Mark Twain quando lhe relataram que se havia finado: «As notícias sobre a minha morte são francamente exageradas.»

domingo, 13 de janeiro de 2008

Uma questão de ascendentes

Momento 1: A mulher passava na rua, transportando à cabeça uma enorme bacia de plástico colorida e apinhada de coisas que decifrei como comida. Às costas, transportava também um sonolento bebé de meses amarrado num lençol igualmente colorido e que até aí me habituara a ver unicamente em reportagens sobre África. Para lá da montra de vidro com os estores corridos, reparei que o homem fardado de bege que guardava o edifício onde me encontrava lhe lançou um assobio. Ela parou, olhou-o sem alterar o semblante ausente, abeirou-se e fez uma vénia a fim de baixar a bacia colorida de plástico ao nível do alcance do braço dele. O guarda retirou-lhe de cima uma coisa parecida com um pastel e levou-o à boca. Ela desfez a vénia e partiu em silêncio, tal como se havia acercado, sem esperar por qualquer paga. Momento 2: Um miúdo, dos seus treze ou catorze anos, maltrapilho, descalço, transportava numa mão um pequeno banco de madeira e, na outra, uma caixa de papelão do formato das de sapatos, onde albergava panos sujos, diversas latas e uma escova. Para lá da montra de vidro com os estores corridos, reparei que o homem fardado de bege que guardava o edifício onde me encontrava lhe lançou um assobio. Ele parou, olhou-o sem alterar o semblante ausente, abeirou-se e fez uma vénia a fim de poder pousar no chão o pequeno banco de madeira e a caixa de papelão com os panos sujos, as latas e a escova. O guarda esticou o pé sobre o banco e o miúdo começou a engraxar-lhe os sapatos em silêncio. No final do trabalho não pago, retirar-se-ia no mesmo silêncio com que se aproximara. Estes dois momentos serão meras ilustrações fugidias da realidade da Angola do presente. Onde cada ascendente, assim como a sua falta, é assumido sem mácula por toda uma sociedade, de baixo a cima. A farda daquele guarda, um simples e mal remunerado segurança civil privado, dar-lhe-à o poder de se servir dos produtos e dos serviços destes tão iletrados quão inseguros camponeses transformados em vendedores ambulantes na selva de Luanda.

Hotel Regime

No surpreendente universo que é Luanda diz-se que os hoteis têm taxas de ocupação real que suplantarão os 100%. Espanto? Nah, afinal trata-se de Angola. Razões técnicas? Insuficiência da oferta sobre a procura. Razões menos técnicas? Assim é que é bom! A meia dúzia de hoteis existentes, incapazes de dar guarida aos milhares de viajantes que por lá aportam todos os dias, cobram os preços que querem e com isso terão lucros fabulosos. Quem sabe se não superiores ainda aos da outra exploração, a petrolífera. Algumas camas rodarão diariamente por mais do que um cliente e muitas outras serão utilizadas fora do circuito dos hoteis, em alojamentos privados. Numa informalidade naturalmente forçada pela pretensão de satisfazer as necessidades e as urgências dos clientes. Ajustar a oferta à procura? Mas isso equivaleria a um mercado mais transparente, à emissão de novas licenças, à entrada de novos operadores e ao estabelecimento de preços mais concorrenciais! Bom para os clientes? Talvez, mas certamente mau para o actual regime, onde consta cultivar-se um grande espírito hoteleiro.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Tabaco condicionado

Miguel Sousa Tavares, em crónica habitual no «Expresso», qualificou Portugal como um «país de polícias e de eunucos». Tudo por causa da malévola nova lei do tabaco, que apelida de «lei do terror». Dentre a longa série de patifarias idealizadas por um legislador «com sérios problemas mentais» e aprovadas por «deputados incompetentes e sem coragem nem vontade própria», chega-se a recusar um último cigarro a «um velhinho, internado para morrer num lar»! Claro que isto é só mais um dos fundamentalismos do Miguel. Bem menos engraçado do que o utilizado há trinta anos atrás pelo pai, Francisco, que em plena Assembleia da República se havia ficado por justificar a discordância com um mero «coarctar da liberdade individual» de um representante do povo. Agora, depois de já nem se poder «acender um cigarro para queimar o frio e a tristeza», talvez que apenas reste ao Miguel emigrar. Por exemplo, para Angola, um paraíso de país para tabagistas empedernidos, onde se pode fumar seja em que sítio for, até nos quartos dos hoteis. E onde a frescura do ar condicionado transportado pelas condutas costuma vir acrescido do alegre e quente cheiro a tabaco.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Uma questão de indicadores

Por contraponto ao silêncio de outras eras, este meu descanso natalício teve a novidade de centrar a conversa de um anormal número de jantares ceados no tema Angola. Certamente que com o intuito de anteciparem as minhas justificações e/ou para demonstrarem solidariedade com a minha recente aposta africana, quer familiares quer amigos fizeram questão em divulgar-me a sua própria noção da realidade angolana. Esforço fundamentalmente protagonizado pelos que nunca lá estiveram. A informação mais partilhada era a de que Angola apresenta uma das mais elevadas e persistentes taxas mundiais de crescimento do PIB. No que indiciaria a bonomia da minha escolha. Contrariando algum do espírito natalício assim criado, esforcei-me por esclarecer que a persistência daquele indicador está em linha com os aumentos igualmente sustentados nos preços do barril de petróleo. E que aquele mesmo indicador concorre com a outra realidade de Angola ocupar o 162º lugar entre os 177 países analisados pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) na construção do seu IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Onde se inclui uma das mais baixas taxas de esperança média de vida do mundo: 42,7 anos! O que será sinal de que uma certa ideia da vida em Angola andará a ser formatada pelos indicadores errados.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Lógica (ligeiramente) africana

Uma pessoa que esperou 4 (quatro) horas na urgência de um hospital público português acabaria por morrer antes sequer de ser atendida por qualquer um dos médicos presentes naquele serviço. O bastonário da Ordem dos Médicos, que se supõe ser português, concluiu que a culpa foi do primeiro-ministro do governo do País. Esta lógica parece-me algo africana. Embora admita que só ligeiramente.

Poema à Mãe

No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.

Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha – queres ouvir-me? –
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;

Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;

Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...

Mas – tu sabes – a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.


Eugénio de Andrade, «Os Amantes sem Dinheiro»