segunda-feira, 30 de junho de 2008

Atracção fatal

Ontem à noite dei pela presença de um mosquito no quarto. Passou a alguma distância dos meus olhos, levantei-me de imediato e puz-me em posição de ataque mandibular. Como planava em diferentes focos e planos de luz perdia-o frequentemente. Preferi então estancar de pé e seguir-lhe o voo com o olhar, tentando adivinhar-lhe as coordenadas e antecipar o local da aterragem, mas o meu radar visual acabaria por perdê-lo entre a selva de cores dos cortinados. Decidi então apagar as outras luzes do quarto a ver se o convencia a concentrar-se no diâmetro fosforescente de um abajour. Não deu resultado. Lembrei-me depois que alguém me avisara que afinal eles preferem os locais mais escuros e voltei a ligar todas as luzes do quarto. Procurei vagarosamente nas paredes, com método, de baixo para cima até à altura do tecto, em espaços listados de cerca de um metro, que depois passava a prescrutar sucessivamente mais à frente. Como entre os cortinados, debaixo da cama, na sapateira, ou atrás das mesas perdesse o espaço aberto necessário para a busca à lupa, limitava-me a enxotar com uma toalha. Ao fim de meia hora, como não mais lhe pus a vista em cima, desisti e tentei conformar-me com as três bisnagas de repelente que trouxera de casa e quiçá poderiam agora mostrar-se mais eficazes. Preparei-me para deitar, lavei os dentes e besuntei-me do líquido pela cabeça, cara e pescoço. Quando saí da casa-de-banho, a imaginar-me já um chupa-chupa gigante de repelente, dei com o mosquito plantado na porta do quarto, mesmo junto ao ralo do visor. Como antecipei o troar do barulho por todo aquele andar do hotel, coloquei a amortecedora mão esquerda ao lado do alvo e aprestei-me a libertar a direita para a explosão. Ostensivamente discordante da minha postura de ataque, o insecto levantou voo, internou-se na zona do pequeno hall de paredes pintadas a verde e nunca mais o vi. Ainda retomei por minutos a metodologia da busca das listas pelas paredes mas, dado o insucesso, teria apenas como resultado uma nova besuntadela antes da entrada nos lençóis, ao mesmo tempo que me interrogava sobre o que eu poderia ter de comum com a Sharon Stone. Quando acordei de manhâ, logo me lembrei de verificar a eventual violação nas côres das almofadas mas, nada, permaneciam na mesma brancas como tivera sido de neve o meu sono. Entrei na casa-de-banho com a urgência de olhar para o espelho na busca de uma picada no rosto e dou de caras com o mosquito lá colado. Como partir o espelho estava fora das regras da caçada, optei por atirar-lhe com uma toalha, mas com tão má sorte que o vento provocado pela força do lançamento tê-lo-à feito sair da zona do embate. Deixei de o ver, no espelho, na toalha ou em qualquer outra eventual zona de sinistro. Não aguentei procurar em mais sítio nenhum e atirei-me ao duche, irritado, dividido entre culpar-me pela falta de pontaria ou protestar à governanta pelo mobiliário do hotel não ser todo feito de pedra. Antes de sair do quarto ainda me lembrei de colocar o termostato do ar condicionado no mínimo possível, 16 graus, na esperança de que tal o fizesse hibernar de vez. Como dei por bem empregue o tempo passado pelo caminho a reflectir sobre o sucedido, mal cheguei ao serviço liguei para o hotel a pedir que vazassem insecticida no quarto. No final do dia, bem que poderia chegar a tempo de homenagear o mosquito com um enterro na sanita. Pois foi com esse pensamento que reentrei de novo no quarto e logo me entusiasmei pela presença de uma botija de insecticida em cima da mesinha. E nem cheguei a tirar o casaco, na ânsia de cheirar a desinfestação. Como não cheirasse a nada, comecei a temer pela fauna e a antecipar mais uma nova piada sobre o sentido de serviço dos angolanos. Aprestei-me então a desligar o frio em que permanecera o quarto durante todo o dia quando, ao lado do termostato, quem vejo eu, lampeiro de calmaria? Pois! Vai ficar ali plasmado na parede toda a noite, para servir de exemplo. Até aceito que os castigos públicos estejam fora de moda, mas estou com a sensação de que dormirei bem melhor esta madrugada.

domingo, 29 de junho de 2008

Uma questão de limpeza

«Está limpo». Foi assim, sem mais, como quem anuncia a independência a um drogado ou a salvação a um condenado à morte que já cheirava o esturro, que o médico me informou que deixara de ter paludismo. Soprei mais uma valente nota no trombone da tosse seca que me acompanhava há já duas semanas e vim embora pouco convencido da limpeza, mesmo que certificada pela análise das três gotas de sangue que me haviam retirado meia hora antes. Como sempre nestas ocasiões, fui para lá com cara de enterro, próprio de quem antecipa a sugestão da entrada de uma agulha na pele, numa impressão ainda mais dolorosa do que a de passar uma barra de tijolo pelos dentes. Ahrrr. Esta coisa de ir para lá a mostrar receio pelas picadas de agulhas até que costuma ser um sucesso entre as enfermeiras, que invocam velhos adágios sobre a cobardia dos homens perante certas minudicências para logo prometerem meiguices que, nalguns belos casos, infelizmente, não cumprem. Pode até parecer mariquice, mas não consigo ultrapassar a sensação da natureza antagónica das matérias que se juntam no acto do picar de uma agulha, aço e pele, que me causam os maiores arrepios e que, mesmo que depois dali saiam rios de sangue, já não chegam a incomodar-me mais no alívio do princípio do fim da picada. Sem grandes ilusões, até por não haver enfermeiras à vista, quando entrei para o check out da malária pedi apenas que me salvassem de voltarem a picar-me na ponta do indicador, condescendendo os meus carrascos na escolha do médio. Enquanto faziam de conta que não percebiam o gesto que lhes fazia com os dedos, virei a cara para o lado, como sempre faço, fingindo apreciar os posters da publicidade médica colada nas paredes. A avaliar pela nudez daquele gabinete de enfermagem, fiquei com a impressão de que Angola não andará nos rankings mundiais dos laboratórios farmacêuticos, se calhar porque não quererão perder tempo a comissionar receituários para o fraco poder de compra das cerca de 15 mil pessoas que todos os anos por aqui morrem com a malária e o HIV. Quando saí dali, trouxe comigo a sensação de que nunca estamos verdadeiramente limpos de alguns dos lixos do mundo.

sábado, 28 de junho de 2008

S. Pedrinho

Sempre apreciei minorias. Creio até que, tirando o Benfica, nunca pertenci ou militei em nada que se pudesse considerar maioria. Talvez também por isso o meu santo popular preferido seja o S. Pedro, bem menos conhecido do que os outros dois, o alfacinha António e o tripeiro João, mas cujas festas, tendo melhor e mais alargada imprensa, perdem para as do Pedro em genuinidade. Ora, o berço desta verdade-verdadinha encontra-se num minúsculo local do mundo chamado Póvoa de Varzim, onde eu muito gostaria de poder estar esta noite. Hoje acordei com a lembrança daquela anedota sobre os velhos asilados que, depois de se interrogarem sobre a frequência com que cada um ainda se ia aventurando nas lides conjugais, ficaram pasmados com a justificação para a enorme euforia do que só-lá-ia-uma-vez-por-ano. «Porque hoje é o dia!!!»

terça-feira, 24 de junho de 2008

Será menino ou menina?

A ligeira constipação continuada de vários dias, mais o arranhado da garganta e a sensação de frio nas mãos e nos pés já o prenunciavam mas, mal o termómetro detectou febre, fugi para o médico. Foi então confirmado, por uma segunda picada, que a primeira havia tido uma incubação venenosa. Paludismo. Bora lá um saco a abarrotar de medicamentos e uns dias em casa, numa penitência de regulador de horários de toma dos remédios. No final do primeiro dia desta solitária e tortuosa espera, dou comigo refém de um anseio. Num país com maioria de mulheres, espero que pelo menos tenha sido de fêmea a picada.

Kizomba

Pela primeira vez desde que cá estou assisti a uma verdadeira festa angolana, das que por aqui são consideradas de arromba, muito próximas do paraíso, porque metem jantar, bar aberto e, depois, kizomba. Saber-se que este pack do sonho local fazia parte da agenda de uma reunião de empresa, que incluía palestra de presidente e diversas apresentações de números, metas e objectivos, será dispiciendo. Tudo começou, afinal, quando os gigantescos altifalantes do recinto começaram a tremer com o som arranhado que emitiam e a ameaçar desfazerem-se ante o portento da base rítmica da primeira kizomba da noite. Ainda sentados a saborearem os primeiros whiskies post-jantar, já de pé no bar a forçarem a antecipação da festa ou em redor do enorme plasma onde uns miúdos russos cheios de garra aviavam umas estrelas holandesas a quem de repente falhara a luz, os corpos começaram por abanar-se como se um silencioso formigueiro os invadisse. Momentos depois, já todos no recinto dançavam. Todos menos este escriba, cujos dotes de dançarino, para lá de uns pré-históricos e cirúrgicos slows arrastados por discotecas às escuras, lhe deram a fama de insigne cabide dos casacos dos mais foliões. O mais impressionante da coisa ali é que toda a gente dançava com toda a gente, num ajuntamento e partilha de parceiros que tinha tanto de invulgarmente democrático quanto a minha experiência por aqui ter-me-á já demonstrado que esta sociedade será ainda mais estratificada do que qualquer uma do Ocidente que eu conheço. O motorista a dançar com a directora, a telefonista com o administrador e o presidente com todo o mulherio que se dispõe a aparecer-lhe à frente e que aproveitam o momento para lhe deixarem gravadas as impressões digitais do ondular das ancas. Aliás, os angolanos parecem preferí-las grandes, largas, bojudas e elas percebem bem isso pois são sempre as mais opulentas, de rabo, coxas, às vezes barriga e, outras tantas vezes, isto tudo junto, quem primeiramente se lança à pista, com o mesmo à-vontade de uma super-modelo no início de um desfile de Yves Saint-Laurent. E mesmo quando calha o par masculino revelar os mesmos dotes avolumados, é estranho verificar-se que nem assim eles perdem a harmonia na dança e, quer a área de 3 m2, quer os duzentos e tal quilos que ambos formam, não os impedem de se elevarem até ao nível da elegância de um pas-de-deux de um casal de bailarinos do Bolshoi. Igualmente impressionante aqui é a capacidade que todos demonstram para se transfigurarem, numa linguagem corporal que contagia todas as poses, movimentos e gestos e cujos significados são partilhados alegremente por todos, numa estranha cumplicidade que torna aquilo tudo, a meus olhos, ainda mais exótico. Todo o tipo de ajuntamentos são aqui permitidos, desde os rabos solitários que descem ao nível do chão para abanarem garrafas pousadas, passando pelas parelhas a agarrarem-se numa partilha de códigos de dança que parecem próprios, até à multidão que se movimenta a um só gesto, como se de antemão cada um soubesse exactamente o ritmo a dar a cada som que lhes chegasse. Embora juntos, cada um parece manter-se concentrado no seu próprio frenesim, num somatório que potencia exponencialmente a energia do grupo. Perante tamanha efervescência, um atento sul-africano presente não perdoaria. «Colocassem cinquenta por cento desta energia no trabalho e Angola seria o país mais produtivo do mundo». Felizmente para os kizombados, o dia seguinte era domingo.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Grau zero do turismo

País com condições espantosas para o turismo, pelo clima ameno durante todo o ano, pelas praias treze vezes maiores do que as nossas, pela natureza viva e pelo surpreendente da mistura de paisagens diversas num só olhar, Angola está, no entanto, no grau zero do turismo. Poucos hoteis, por falta das licenças protectoras dos actuais industriais e diversos outros condicionamentos, incluindo certificações de qualidade, escolas de hotelaria, livros de reclamações, pessoal habilitado, instalações, elevadores, lençóis, água, sabonetes, toalhas, lâmpadas. Uma estadia de dois dias num hotel do Lobito deu para certificar isto mesmo. Desde logo, uma restauração corrida a 70 kwanzas o dólar, quando o oficial se tem alimentado nos 75 e, nos quartos, mesas de cabeceira com candeeiros que não podem ser ligados por ausência de tomadas próximas, modernos plasmas a parecerem-se com aquários de mosquitos e genericamente quartos grandes cheios de sofás, mesas e restantes adereços a conviverem com raquíticos espaços para WC's. Aqui, o lavatório à altura dos joelhos, a tampa de plástico maior do que o tamanho do ralo, o assento mais pequeno do que a base da sanita, ou o rolo do papel higiénico colocado na parede a dez centrímetros do chão. Salva-se a aventura do duche, tomado num poliban de canto, com dois biombos de alumínio e acrílico preparados para deixar verter a água do banho dos clientes com mais de um metro e setenta de altura, com a enorme misturadora da água á altura do queixo, mais a bisnaga do chuveiro poucos centrímetros mais acima e o colete de forças de estar de sentinela numa base de 40 por 40 cm, que proíbe a ginástica ritmica de passar o sabonete pelo corpo e obriga a desertar dos biombos para ensaboar lá fora e só regressar para o banho. No final, a água quente que pareceu ter enferrujado a abertura das portas acrílicas que fechavam o duche e que fizeram pensar, durante cinco eternos minutos, no ridículo de ficar-se prisioneiro de um poliban do Lobito. Salvam-se os vestígios da paradisíaca invenção portuguesa que foi a Restinga, ali tão perto.

Etnomachismo

O etnocentrismo é tramado. De repente, a firme e hirta pirâmide de valores que costumamos mirar como a uma vaca sagrada dá uma volta de 180 graus e fica suspensa pelo cone. O que jurávamos ser sopé ameaça agora transformar-se em cume. À mesa de um restaurante, um angolano maduro, com formação superior e que facilmente poderia ser englobado na chamada elite deste país, decide atacar a irracional fidelidade europeia à monogamia. Presas fáceis, aos dois solitários tugas presentes na mesa nada mais resta de que unirem-se na cumplicidade do sorriso. Entretanto, o outro comensal não pára de degustar o seu menú de argumentos, centrando-se no prato daqueles pobres exemplares de uma cultura repressiva que limita o potencial sexual do homem porque o escraviza a uma só fidelidade. Indecisos entre o assumir da vergonhosa conduta histórica e a atenção à requentada pedagogia do conviva angolano, nenhum de nós se atreveu a interrogá-lo sobre a receita para o eventual potencial sexual da mulher angolana. Fiel ao que diz ser a cultura local, o nosso interlocutor passa a gastar a sua energia em exemplos de homens poderosos, generais, que chegam a coleccionar quatro e cinco mulheres extra e, como convirá para o receituário do rejuvenescimento, todas elas mais novas pois que para ressonar já bastará a legítima. Não querendo pôr em causa a bravura destes homens ilustres, concentrei todas as minhas forças em contar uma história que ouvi recentemente a alguém, sobre um jardineiro que foi preso depois de se saber que se habituara a tratar em segredo o negligenciado potencial sexual da legítima de um general. Remédio santo, depois deste exemplo, passamos todos a falar de sobremesas.

sábado, 14 de junho de 2008

Titanic angolano

Algumas vezes, por aqui, julgo rever uma das cenas iniciais do Titanic, o filme. Quando a velha Dorothy inicia o relato das suas memórias do embarque inaugural do barco sobre as imagens dos mergulhadores a darem com o casco afundado e a objectiva da câmara entra no interior do convés para montar um longo travelling que transforma rapidamente o frio cinzento das profundezas do mar no quente colorido do grande salão de festas do apogeu do navio. Aconteceu-me isso pela primeira vez quando visitei o Lobito. Ao olhar as praias da Restinga e imaginar a beleza da marginal pedestre de outrora, com as suas casas de veraneio apontadas para o Atlântico, a relva de flores a arrastar-se por entre as pequenas dunas, prenhes de borboletas condenadas a morrer à noite contra as luzes do hotel plantado na praia, a imagem das copas das árvores pontiagudas como cedros a contornarem as pequenas enseadas que nasciam entre os pontões de pedras, quentes fiordes de uma parcela de África que os lusitanos ali deixaram como herança. Quando relatei o que realmente vira a quem vivera esse tempo ali, o som do lado de lá do telefone tornou-se turvo e as lágrimas de uma memória ferida fizeram-me ter a certeza de que se deixou por estas terras algo do eterno sonho luso de transportar o Paraíso para o lar e certamente que também muita da nossa capacidade inata para tocar os corações e as vidas dos outros, por sermos dos poucos povos capazes de nos revermos em cada um dos demais. Como já ouvi por aqui a um atento zimbabuano, na vez dos ingleses abandonarem a Rodésia até os tapetes levaram com eles. No último fim-de-semana, numa mariscada missão a Porto Amboim, fui mais uma vez forçado a revisitar o Titanic. Um local feio, pegajozo de lixo e de pó, com as ruas inundadas pelo cimento das areias armazenadas pelas chuvas e que há muito sufocaram o velho alcatrão, que tem duas estações de serviço que disputam um estranho jogo entre a falta-de-gasolina e a avaria-na-bomba, que pode derrotar por diversas horas quem lá se atreva a abastecer-se e um hospital cuja triagem de Manchester consiste em deixar os doentes enfileirarem-se nos espaços do que já foram os seus jardins. No entanto, debaixo do lodo onde tem vivido naufragado desde há trinta e cinco anos, reconhece-se em Porto Amboim Espinho, ou Matosinhos, mais as suas avenidas cortadas a régua e esquadro para mais facilmente poderem desaguar para o mar. As ruas têm a largura de Angola, com tão lindas quão poeirentas palmeiras seivadas de verde e de amarelo que continuam plantadas nos separadores a sinalizar o trâfego, algumas velhas casas coloniais que continuam a ostentar os frescos suaves dos laranjas, dos verdes e dos rosas do nosso século XIX e cujas tintas continuam a ser importadas da metrópole, as praias bordejadas pelas omnipresentes palmeiras que tanto guardam as redes do voleibol como as pedras que balizam os jogos de futebol e o grande morro que orgulhosamente mostra ao mar as entranhas de placas de ardósia enquanto vigia os miúdos que sobem ao pontão de cimento e ferro que invade o oceano para apanharem peixes com o simples arrastar de linhas com um anzol descarnado na ponta. «Nesta terra só morre de fome quem quer», recordam-me pela enésima vez desde que cá cheguei. Vista da praia, a cidade torna-se familiar, com os rebanhos de barcos a pastarem junto à entrada do porto, cuja lota se habituou a recolher o pescado dos arrastões chineses que sugam industrialmente os fundos dos mares, os pescadores de pé na praia a contorcerem-se em lanços na linha da maré, o cheiro a grelhado que chega dos restaurantes amesentados na marginal e o batuque dos talheres que se agitam nas mesas das esplanadas viradas no sentido da praia. Do comando da cozinha, cujos cheiros nos atraíram desde Luanda, trezentos quilómetros para norte, uma portuguesa sardenta e de olhos azuis serviu-nos as lagostas duplamente avermelhadas pelo grelhado. No final, apenas a conta, em dólares, tentava enganar-nos de que aquele não tinha sido um pedaço de Portugal.

domingo, 8 de junho de 2008

O Gato

Um dos ídolos da minha infância de futuro-futebolista-famoso foi o Alhinho, que imitei mal vesti pela primeira vez o equipamento com as cores do clube da minha terra, calcei um par de chuteiras com pitons de borracha e passei a jogar os meus sonhos num campo pelado de saibro e sequioso de mercurocromo mas como se me encontrasse a planar nos holofotes relvados do estádio da Luz. Desse sonho vivido em inúmeras colecções de cromos de jogadores com as caras manchadas de rebuçado, usurpei o uso das meias deixadas displicentemente em baixo, mais a camisola debruçada sobre os calções e o cabelo encaracolado, no meu caso por comprido, do Alhinho, cuja forma de se antecipar aos lances lhe valeu o cognome de «Gato». Como não poderia deixar de ser, o início da minha fugaz carreira de jogador da bola, que naquela altura acumulava com a de impulsivo coleccionador de cromos, foi feita na mesma posição do campo que praticamente inventara para ele mesmo e que se chamava libero. Pois foi também livre a queda que ele fez agora, aqui, num hotel de Benguela, no fosso de um elevador que o enganou, ao dizer-lhe que subia ao 6º andar para afinal ficar estancado no rés-do-chão. Conto continuar a imitá-lo, como certamente ele faria se tivesse sobrevivido e passar a deitar a ponta do pé no chão do elevador antes de lá entrar, como se a experimentar a temperatura da água à entrada da banheira. Gato escaldado...

sábado, 7 de junho de 2008

Cabinda

Desconhecia-se-lhe o verdadeiro nome, a idade, donde vinha, se tinha família, se era mesmo mudo, ou como aparecera por ali. Sabia-se, apenas, que se dava pelo nome de Cabinda. Vivia do lixo que encontrava amontoado nas traseiras dos restaurantes próximos ou do que lhe davam os comerciantes de fruta das redondezas, o que na maioria dos casos pouca diferença haveria, tinha o lar montado entre as traves enferrujadas de uma antiga cabine telefónica no que também já fora um passeio de calçada à portuguesa e, como rondava permantemente as ruas do bairro e era solícito em atender a qualquer pequeno recado, os vizinhos faziam de conta que lhes tomava conta dos carros e sustentavam-no a moedinhas de notas de kwanzas. Uma noite, um condutor embriagado saltou o passeio onde ele dormia e obrigou a vizinhança a fazer uma chamada de urgência para o hospital mais próximo. Lá chegados, não saber o nome do paciente ameaçou perigar ainda mais o que se temia ser um traumatismo craniano. Surpreendentemente, Cabinda levantou a volumosa carapinha ensanguentada da maca e soletrou o seu verdadeiro nome, anexando vários apelidos de forma tão pausada quão consciente. No dia seguinte, os que quiseram seguir este folhetim haveriam de ser informados de que, afinal, apenas sofrera algumas escoriações. E de que acordara cedo para tomar um duche, pedir que lhe fizessem a barba e emprestassem roupa lavada, matabichar o que havia para pequeno-almoço e desaparecer para nunca mais ser visto por aquelas bandas.