domingo, 31 de agosto de 2008

Frescura

Detidos sete agentes da polícia suspeitos de "massacre do Sambizanga". Ouvi uma vez dizer a um habitante de Luanda. «Tenho mais medo dos polícias do que dos ladrões. Ambos andam armados, mas ao menos com os ladrões sabe-se o que querem.» Talvez que depois de notícias como a desta acusação se passe a saber melhor o que querem os polícias angolanos.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Impenitente Cantinho

Férias alargadas em Portugal são ocasião propícia para as interpelações de amigos e conhecidos que mantêm a impenitência sobre Angola. «Consta que aquilo por lá é bastante inseguro, não?» Convoco todos os exemplos de insegurança que conheço, desde os miseráveis roubos de telemóveis, aos mais astutos esticões de bolsas e carteiras, os tiroteios entre gangues, as altercações entre vizinhos do mesmo bairro que são resolvidas a tiros de zagalote e shotgun, os descarados carjacking, os assaltos diários a gasolineiras, ATM’s e bancos, até a coqueluche de já se dinamitarem carrinhas de transporte de valores e respondo numa tranquilidade falsa. «Haverá sítios bem piores!»

domingo, 24 de agosto de 2008

Férias de Angola III

Calcorrear em Agosto o Porto, que decidiu há tempos deixar de ser Feliz, é reencontrar os fantasmas de que persistimos em julgar ter sido salvos. Afinal, eles continuam lá. Nos bancos dos poucos jardins, nas esquinas das muitas ruelas, nas paredes de casas e muros desertos, nos abrigos imundos de lugar nenhum, a um canto dos enormes ventres urbanos que são a rotunda da Boavista, os Aliados, o Marquês, o Carregal, as Antas, os Poveiros, a Lapa, enfim, em todos os locais onde haja carros para arrumar uma moedinha. Continuam a olhar-nos com a mesma passividade adormecida de sempre, como se todos não passássemos, afinal, de algibeiras andantes que de vez em quando se lhes estacam para tilintar um remorso qualquer. Quando se lhes olha de frente percebem-se os rostos magníficos, para lá das pupilas que há muito deixaram de ver, das orelhas que já só escutam o que o vício lhes grita, das vozes roucas por tanto chamarem a liberdade que se foi, dos gestos da face que jazem mortos nas rugas, tudo assim camuflado numa penumbra de humanidade. Creio que jamais se filmou isto tão bem como aqui.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Férias de Angola II

Reentro, após alguns anos fora, no Centro Comercial Brasília e o que é que vejo? Quase vazio, de lojas e de clientes. Mas a abarrotar de pedintes nos corredores, aparentemente imperturbáveis com a falência dos lojistas ou com a fuga dos portuenses para férias sem os avisarem. Procurei, sem encontrar, o lugar onde tantas vezes almocei ao ritmo da leitura do jornal do dia, a montra que me obrigou a coleccionar camisas e gravatas, a livraria onde vira tantos títulos a que achava graça e que me obrigavam a entrar para folhear livros, jornais e revistas, o balcão onde me abastecia de after-shave, mais os cremes que as meninas me vendiam sem que eu chegasse a descobrir a que se destinavam e tantas outras lojas que durante tanto tempo me forneceram tantas coisas menos a capacidade de as guardar na memória. Dizem os entendidos nestas coisas que o velhinho Brasília, que há 30 anos atrás inaugurou o conceito no Porto, pertence à primeira geração dos shoppings e que o seu declínio é um sinal de mudança nos hábitos dos consumidores. Custa-me a acreditar. Acaso deixaram os portuenses de comer? Ou de tratar da aparência? Ou de vestir? Ou de ler? Ou de ...? Bem, afinal sempre há lá agora uma «Eros-Shop». Vá-se lá entender estes entendidos.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Férias de Angola

«India. Menina de 10 anos assassinada por causa de um iPod.» Há uns anos atrás, para não parecer que recusávamos a prenda de aniversário oferecida à nossa filha, tivemos de telefonar para a mãe da amiga que se apresentou na festa-de-anos com um embrulho contendo um telemóvel topo-de-gama que custaria mais de seiscentos euros. Com muito pouca imaginação para justificar o que só consideramos bom-senso, o argumento decisivo para recusar o nao-faz-mal-não-me-custou-nada-pois-comprei-o-numa-promoção-leve-dois-pague-um acabaria por ser o real. Uma criança de 10 anos não precisa de um telemóvel. Ou de um i-pod.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Engraxadores da memória

Um dos mais seguros e confiáveis negócios em Luanda é o dos engraxadores de sapatos. Falta de passeios, ruas esventradas, torrentes de água e esgotos a deambularem pela arqueologia das calçadas, automóveis a pastarem em bermas de estradas de terra batida, outros a abrirem no trâfego quase sempre parado da capital, fazendo renascer redemoínhos daquela poeira avermelhada que é uma exclusividade africana, tudo permanentemente embrulhado num nevoeiro de sujidades, são as condições óptimas para o exercício desta actividade. Depois, putos ladinos e sempre atentos às biqueiras alheias dão ao ramo a agressividade comercial e a proximidade com o cliente que muitos outros sectores da economia angolana não têm. Reparei isso mesmo quando um miúdo, armado de um banquinho com um tampo do tamanho de uma caixa de sapatos e umas pernas que não mederiam mais de trinta centímetros de altura, um pedaço de pau que trazia agarrado uma meia duzia de cerdas de nylon a que ele pretendia dar o destino de escova e uma garrafa de plástico que antes teria albergado 0,25 l de água natural mas agora fora substituída por um cocktail de tinta e lama recolhida dos charcos mais próximos, apontou com ar reprovador para o lugar onde as baínhas das minhas calças tocavam num par de pálidos e outrora castanhos sapatos de vela. Comecei por rechaçá-lo com o olhar, menos porque ele não tivesse razão na acusação ou na sentença da oportunidade de negócio, mas mais pelo embaraço que me criou. De repente, apercebi-me que tinha, calçados, um par de sapatos com 10 anos de idade. O que equivaleria a dizer que estava mais velho outro tanto tempo desde que usei aqueles Rockport pela primeira vez, na Expo 98, comprados numa loja no Colombo, donde saí logo com eles nos pés para calcorrear o nosso segundo dia de vigília á exposição universal, num 10 de Junho que meteu visitas rápidas aos pavilhões do mundo exposto, mais com o intuito de sacar vistos no passaporte que ofereciam às crianças, após espera em longas filas de horas, como as quase três para conseguir almoçar hamburgers & colas no mais enlatado MacDonalds de sempre, assistir ao concerto dos Xutos & Pontapés na praça Sony, antecipadamente pago com a audição do discurso do presidente Sampaio e, sem levantar o rabo do chão, ver no ecran gigante o início do Campeonato do Mundo de Futebol de França, com o Brasil a ganhar 2-1 à Escócia. Dez anos é, realmente, muito tempo para calçarmos. E porque todo aquele tempo tivesse passado ali em pegadas de segundos, algures entre a expressão interrogativa do miúdo e a abstração do meu retorno sem passaporte ao passado, lá acedi a benzer os sapatos coçados que outrora foram castanhos com aquela água benta de tinta e lama nascida nos charcos de Luanda.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Pescarias

A melhor imagem sobre o tipo de colonização que os portugueses fizeram em África foi-me dada, há já algum tempo atrás, por esta anedota. Um português e um inglês foram pescar na margem de um grande rio e, para os ajudar, levaram um criado africano. Durante quase todo o tempo que durou a pesca, o criado africano teve ocasião de mostrar toda a sua inabilidade para o acto. Desde os iscos que caíam dos anzóis ainda antes da linha atirada pelas canas de pesca chegarem à água, aos cortes na linha e às perdas dos anzóis pela falta de jeito em retirá-los da boca dos peixes, até à perda dos próprios peixes que escapavam ao cesto e deslizavam para o rio quando eram agarrados pelo rabo. O português, crescentemente irritado por tamanha inabilidade, descarregava a sua fúria através de um chorrilho de insultos básicos. «Malandro», «incompetente», «calaceiro», «miserável», etc. Tudo intermediado pelo conclusivo «preto». Durante este mesmo tempo, o inglês manteve-se perfeitamente mudo e impassível, aparentando ignorar a presença do criado. De repente, as águas revoltas do rio galgaram a margem e levaram o africano. Pergunta: qual dos dois pescadores se lançou de imediato à água para o salvar?

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Pornografia

Sou de um tempo em que à evidência do que era excessivo e ao excesso do que era evidente se dava o nome de pornografia. Talvez por isso, neste blogue angolano, se evite escrever sobre política. Por razões, acrescentaria, excessivamente evidentes. Mas, de vez em quando, lá vem a tentação. Como esta notícia, justificando o burburinho que tem antecipado as próximas eleições legislativas em Angola. Juro não perceber o temor de alguns. No deserto político que tem sido este país e com o exercício do poder dos actuais ministros da UNITA a demonstrar não terem qualquer diferença dos demais do MPLA, para além do NIB, será de esperar que tudo fique, evidentemente, na mesma. Ou seja, qualquer coisa como isto. Problemas ocorrerão, certamente, depois das eleições, quando o actual regime for obrigado a desmobilizar os enormes custos que vem suportando com a angariação maciça de seguranças privados e sua incorporação nas várias polícias. O que fazer no futuro com o actual excedente de patrulheiros da ordem pública, sim, será um problema. Desconfio também do discurso presidencial, de que nem «todos sem excepção consentiram sacrifícios», a avaliar pelos cerca de 25 biliões de dolares de contas angolanas em off-shores que ficaram por reclamar no aperto que as autoridades americanas fizeram no post 11 de Setembro. A sugerir que tais sacrifícios seriam facilmente compensados. Bem mais genuína, finalmente, será a confidência que um empresário estrangeiro, que construiu toda a sua vida em Angola, me fez há tempos. «Rezo todos os dias para que o presidente não abandone o poder». Convicção e expectativa que não teriam nada de anormal se não se desse o caso do empresário, indiano, ser ateu.