segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Fim

Tal como pré-enunciado este blogue acaba aqui. Agradeço aos meus Seguidores terem-no sido. Voltarei, seguramente, à carga, num outro qualquer lugar. Copio o sábio «deve-se lavar os olhos entre cada olhar». Até lá.

A despedida

Foto Roberto Ivens
No dia em que me despedi de Luanda dei uma volta a pé pela marginal da baía, ex-libris da cidade mais cara do mundo e, durante grande parte da minha estadia por aqui, também o local donde observei Angola. Recordei os joggings musicados às seis da matina por entre o pó, os buracos no pavimento, o lixo que forra os passeios, os maus cheiros, os slalons entre os cada vez mais globais sem-abrigo a dormitarem sob árvores rasteiras regadas a urina e adubadas pelos outros detritos, as velhas palmeiras secas e desmembradas que aguardam o render da jovem guarda que há-de chegar do Dubai, os bancos de madeira há muito arrancados do chão, a intoxicação do ar provocada pela correria dos esgotos que sprintam pelos interstícios da cidade até desaguarem na meta da foz, os pescadores que alam cardumes de peixes atordoados em linhas de anzóis nús, as estranhas algas de cucas, coca-colas, blues, sumos e tudo o que boia embalado à superfície daquela água suja e lamacenta, o martelar das evasões e das recordações do que deixei para trás e que se me surgiam sem pré-aviso a cada desfalecimento, as motas que atropelam gente nos passeios quando a avenida está engarrafada, os malucos que se passerelam descalços em gabardines coloridas de nódoas e que ali teimam em desfilar-se em poses rotas e penteados sioux, as ruidosas zaragatas que de vez em quando entrecortam o zumbido mole e quente dos dias que por aqui correm cansados, as constantes operações stop da polícia sequiosa de gasosa, os deficientes que se dividem entre a marginal e o Kinaxixi a esmolarem os membros perdidos, diminuídos, aumentados, oblíquos, a lenga-lenga dos engraxadores montados nas suas bancas de cartão de tintas deslavadas, pincéis de esponja e águas turvas, as lembranças do primeiro Natal quase Páscoa que passei aqui isolado dos meus e que seria compensado pelo podium privado da também minha primeira S. Silvestre, a sede côr de salmão do Banco Nacional de Angola que fugiu do Terreiro do Paço para ser o edifício mais bonito deste país, as dos ministérios ocupados pelos eternamente bem sucedidos empresários-parceiros locais, o Hotel Presidente que do alto dos seus vinte e seis andares muitas vezes sem elevador consegue cobrar diárias de trezentos dólares americanos, o porto e a alfândega mais lentos e desorganizados mas com os serviços mais caros do mundo, o permanente êxtase de contemplar mães-vendedoras de todas as idades a transportarem os filhos em lençóis dobrados em apêndice nas costas, as luzidias catorzinhas que anoitecem nos passeios nos intervalos de boleias com trilhos marcados pelo estrelato efémero, as milhares de cadeiras de plástico encostadas às paredes dos edifícios que sustentam seguranças em permanente coma, a majestosa trigonometria do exército de carros congelados no trâfego a que durante algum tempo me recusei a alistar muito por culpa das geleiras azuis dos omnipresentes e omnipotentes candongueiros, os arrumadores sempre atentos e fiéis no seu papel de últimos ocupantes da base da pirâmide da corrupção no país, o intermitente odor a Portugal que se percepciona no cozinhado da paisagem citadina e que perpassa também nas elites locais sempre predispostas a copiar-nos no que temos de pior, a memória das suadas convalescenças do assédio plasmódico de que fui triplamente vítima nesta terra onde as fêmeas são maioritárias, os longos períodos de autismo agarrado ao laptop a amaldiçoar a cega, surda e cara Movicel e todos os outros posts que aqui jazem desde o início do blogue e que acompanham, afinal, esta trajetória de um cada vez menor romantismo pela descoberta do que temos em comum e o cinismo que foi ficando refém do olhar sobre a realidade perceptível deste país.