segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Kinaxixi

Sempre que passamos num dos acessos ao largo do Kinaxixi e somos obrigados a parar no par de semáforos seguidos que lá tentam controlar a selvajaria do tráfego automóvel, sou quase sempre assaltado pela mesma imagem. Como se fora uma explosão. Ao lado dos postes dos semáforos, ora num ora noutro, outras vezes em ambos, costumam estar duas mulheres mutiladas. Uma, mais velha, tem apenas os cotos das pernas e transporta-se numa cadeira de rodas. A outra, mais nova, tem uma das pernas serrada até um pouco abaixo do joelho. Para além do que não têm, assemelham-se por serem ambas mães de bebés. Um deles, talvez com menos de um ano, costuma acompanhar a mãe que lhe dá de mamar no duplo colo da cadeira de rodas. O outro, já maior mas ainda a arriscar os primeiros passos, só aparece de vez em quando por ali. E quando aparece, a mãe, que não deve ter mais de vinte anos, esquece o peditório e fica no passeio a brincar com ele. Vi-os, num destes dias, no local de sempre, divertindo-se a jogar às escondidas. Ela a saltitar na única perna, ziguezagueando entre os postes de ferro que sustentam a publicidade a uma companhia de seguros e ele a esbracejar de alegria na perseguição dos passos da mãe, um e outra completamente alheados do resto do mundo que se transportava mesmo ali ao lado, no tráfego de ar condicionado que insiste em atropelar as encruzilhadas do Kinaxixi. Como o semáforo estava aberto, passamos sem ter de descer o vidro do carro. No entanto, o brilho daquela imagem fugaz da brincadeira entre mãe e filho acompanhar-me-ia no resto do meu dia. E, por uma vez, não tive de me interrogar sobre a felicidade que aquela mãe haveria de comprar com uma nota de kwanzas.

5 comentários:

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

encheu o meu dia, essa imagem linda que descreve.

Roberto Ivens disse...

Julia ML,

Folgo que o tenha sido.

Laura disse...

Muito bom o seu texto.
Perturbantemente bonito.

Pergunto-me como será viver permanentemente imerso num mundo que nos arranha a alma. Como será saturar sem descanso a nossa retina de todas as imagens que deveriam caber apenas na outra face do mundo.
- Sofre-se sempre? – Atenua-se com um band-aid? – Ou o hábito é anestesiante?

Não, já percebi! Escreve-se um blog...

E olhe: para não fugir ao jogo das contradições, devo dizer que o seu registo é cru, mas tem um efeito apelativo.
Para quem não conhece África como eu (num desencontro de destinos voluntário e irresolúvel, entre atracções e repulsas) o pólo que vc. põe a funcionar é curiosamente o de sinal + : porque apetece apanhar o 1º avião e mergulhar numa infelicidade construtiva (passageira).
É.
De súbito, o absolutamente irresistível sortilégio do género “out of africa”, que bem sabemos semi-literário, deixa de funcionar tanto.
E curiosamente o seu contrário também.

Apetece por fim desatar o nó neutralizante. E ir ver.
Porque fica a faltar qualquer coisa de prático na nossa teoria universal.

Roberto Ivens disse...

Laura,

Muito bom o seu comentário. Incisivo. Não sendo mais perturbador por causa do band-aid.

Ainda bem que falta qualquer coisa de prático na teoria universal. Se não fosse assim e talvez Pessoa arribasse por causa do enjoo e acabásse por não publicar a Mensagem no blogue do Martinho.

Laura disse...

Ahahahah, tive mesmo de registar a risada que dei!
O blogue do Martinho!

Mas tem razão, estes espaços por onde vamos estando são quase as velhas esplanadas do tempo actual.
Os cafés míticos despareceram sem deixar descendência.
E os de agora não convidam a grandes estadias, que cheguem a dar tempo para umas conspirações sobre o sentido da vida...
- Porque será?
Bem, é verdade que as cadeiras já não são estofadas (parece aliás que o "estofo" desapareceu até dos circunstantes...)
É verdade que há a tlv, às vezes o plasma, a converter os antigos pequenos círculos tertulianos num único grande semi-círculo, emburrado a olhar em bloco para o mesmo sítio!
Não se fala muito... mas de resto como alinhar mais do que 2 ou 3 ideias com o barulho do infernal écrã?
Claro, ainda conservamos o espécime dos bebedores, entregues à tarefa de diluir mais algum sangue no sistema...alcoólico.
Nisso, continua o vestígio da pincelada de Van Gogh!

Há pré-pagamentos, mesas em cima umas das outras, empregados anónimos (de raro em raro lá vem um que nos parece uma pessoa).
E para abrir a inspiração e dar a indispensável "patine", até o fumo dos "pensativos cigarros" desapareceu!:):)
Por fim, ultimamente até paira o espectro das inspecções da ASAE...

Não nos podemos espantar que já não se filosofe sobre o sentido da vida senão em casa! À conversa com a família e os amigos ou então... isso, nos (ainda) insindicáveis blogues;););)