segunda-feira, 17 de março de 2008

Continente sem lágrimas

Como quase sempre, a sauna do tempo angolano ia distendendo os gestos dos comensais no intervalo de mais um domingueiro dia de praia. As nuvens, que parecia quererem brincar à cabra-cega, iam-se interpondo sem pedir licença entre o olhar tórrido do sol e as vaporosas peles morenas que ameaçavam fugir dos bikinis deitados na areia ali próxima. Debaixo dos toldos da esplanada do restaurante, comia-se com os talheres como quem displicentemente tricoteia a malha de uma teia interminável. Na mesa ao lado, que afinal eram várias, corridas como no prolongamento de um jogo de dominó, uma família de cerca de vinte pessoas entretinha-se entre a experimentação da variedade da oferta do menu-buffet regado a cerveja e a decifração do sexo do bebé de uma das três grávidas do grupo. Pelo meio, ninguém ligava ao mais ancião no seu balbucio entredentes, nos intervalos da fumarada com cheiro a espigas que lhe saía do cachimbo e os esforços para não deixar desatarrachar a placa solta que ameaçava fugir-lhe. De repente, um bebé chorou no carrinho estacionadao entre duas das grávidas. Nada de mais banal no meio da maternidade que parecia existir debaixo daquele toldo, a não ser pelo facto de ser o primeiro choro de que me lembro ter ouvido desde que calquei terras de Angola já lá vao cinco meses. Já me haviam avisado: este é um povo que não sabe chorar. Mesmo se com a face mergulhada num vespeiro ou a barriga a destilar de fome nos ecrans da CNN. As mortes de centenas de guerrilhas internas cinicamente militantes, os milhares de desaparecidos que se esfumaram como estatística, a dor do engano da defesa de pátrias de petróleo & diamantes, enfim, a banalidade de crescer genes num continente que se diz perdido entre barris e onças. Quanto ao bebé ali mesmo ao lado, um ligeiro vôo para o segredo do colo da avó pareceu acalmá-lo do calor das peúgas de lã côr-de-rosa às bolinhas que combinavam muito bem com o vestido pintalgado da mesma côr.

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