quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Engraxadores da memória

Um dos mais seguros e confiáveis negócios em Luanda é o dos engraxadores de sapatos. Falta de passeios, ruas esventradas, torrentes de água e esgotos a deambularem pela arqueologia das calçadas, automóveis a pastarem em bermas de estradas de terra batida, outros a abrirem no trâfego quase sempre parado da capital, fazendo renascer redemoínhos daquela poeira avermelhada que é uma exclusividade africana, tudo permanentemente embrulhado num nevoeiro de sujidades, são as condições óptimas para o exercício desta actividade. Depois, putos ladinos e sempre atentos às biqueiras alheias dão ao ramo a agressividade comercial e a proximidade com o cliente que muitos outros sectores da economia angolana não têm. Reparei isso mesmo quando um miúdo, armado de um banquinho com um tampo do tamanho de uma caixa de sapatos e umas pernas que não mederiam mais de trinta centímetros de altura, um pedaço de pau que trazia agarrado uma meia duzia de cerdas de nylon a que ele pretendia dar o destino de escova e uma garrafa de plástico que antes teria albergado 0,25 l de água natural mas agora fora substituída por um cocktail de tinta e lama recolhida dos charcos mais próximos, apontou com ar reprovador para o lugar onde as baínhas das minhas calças tocavam num par de pálidos e outrora castanhos sapatos de vela. Comecei por rechaçá-lo com o olhar, menos porque ele não tivesse razão na acusação ou na sentença da oportunidade de negócio, mas mais pelo embaraço que me criou. De repente, apercebi-me que tinha, calçados, um par de sapatos com 10 anos de idade. O que equivaleria a dizer que estava mais velho outro tanto tempo desde que usei aqueles Rockport pela primeira vez, na Expo 98, comprados numa loja no Colombo, donde saí logo com eles nos pés para calcorrear o nosso segundo dia de vigília á exposição universal, num 10 de Junho que meteu visitas rápidas aos pavilhões do mundo exposto, mais com o intuito de sacar vistos no passaporte que ofereciam às crianças, após espera em longas filas de horas, como as quase três para conseguir almoçar hamburgers & colas no mais enlatado MacDonalds de sempre, assistir ao concerto dos Xutos & Pontapés na praça Sony, antecipadamente pago com a audição do discurso do presidente Sampaio e, sem levantar o rabo do chão, ver no ecran gigante o início do Campeonato do Mundo de Futebol de França, com o Brasil a ganhar 2-1 à Escócia. Dez anos é, realmente, muito tempo para calçarmos. E porque todo aquele tempo tivesse passado ali em pegadas de segundos, algures entre a expressão interrogativa do miúdo e a abstração do meu retorno sem passaporte ao passado, lá acedi a benzer os sapatos coçados que outrora foram castanhos com aquela água benta de tinta e lama nascida nos charcos de Luanda.

1 comentário:

oui! mon amour! disse...

um belíssimo post ! muito obrigada :)

sem graxa ;)