sábado, 1 de março de 2008

O sorriso do motorista

Costumava conduzir-nos habitualmente com desenquadrada calma e ponderação, duas qualidades deveras desfazadas para um motorista condenado a embrenhar-se diariamente nesta sucateira de chapa batida que são as estradas de Luanda. Fazia-o quase sempre com um sorriso nos lábios, o que nos obrigava a devolvê-lo mesmo quando afiançava pelo telemóvel encontrar-se apenas a cinco minutos de distância do nosso local e afinal demorava mais trés quartos de hora até chegar. Conduzia a carrinha de nove lugares fretada pela empresa ao som de música religiosa, brasileira, com cântinhos que acompanhava entre dentes, sempre com um sorriso de Gioconda nos lábios, ao que eu me interrogava se por imitação de um dos santos do seu altar ou se deles teria recebido um qualquer segredo. Uma manhã calhou-me viajar com um grupo de informáticos recém-chegados cujo entusiasmo depressa resvalou para os refrões das músicas saídas do DVD da carrinha acabando por transformar aquela corrida numa missa celebrada por um coro Gospel. Na primeira vez que lhe comuniquei estranhar a fuga aos standard reggae, hip-hop, rap ou kuduru da sua Angola, mostrou-se um humilde DJ disponível para mudar de repertório. Perante a minha indiferença em povoar os curtos percursos com qualquer tipo de batuque, confessar-me-ia ter sido pastor evangélico numa igreja no Brasil. Há dias apanharam-no em flagrante a roubar uns dólares de uma carteira que uma colega deixara momentaneamente esquecida no carro e foi despedido. Confesso que tenho tido dificuldades em eu próprio me despedir da imagem do gesto. Como pode um pastor de almas, mesmo que de um credo eventualmente minoritário, deixar-se tentar por um punhado de dolares? Aspirará um diabólico Lincoln, Jackson ou Franklin a ser bem mais tentador que Jesus Cristo, mesmo se encarnado numa qualquer versão de professar mirabolantes esquemas de cobranças de dízimos? Pelo sim pelo não nos próximos tempos vou andar mais atento aos gostos musicais de quem me transporta. E passar a desconfiar de certo tipo de sorrisos.