domingo, 18 de maio de 2008

Mais próximos do paraíso

«É muita obra / o país está a funcionar / ainda falta andar muito / mas estamos lá a chegar». Assim legenda a golpes de batuque na TPA o Ministério das Obras Públicas do Governo de Angola as imagens freneticamente montadas de cimento, ferro, andaimes, trolhas, tractores, betoneiras, prédios, jardins, parques, escolas, hospitais, estradas, portos, carris, indústrias de cerveja, de coca cola e de papel higiénico, populações de enxada na mão a fazer covas em solos ressequidos na vizinhança de cubatas, mulheres a cegar plantações de rabo para o ar e bébés a tiracolo e o close-up de velhos aldeões entusiasmados em ressuscitar sorrisos desdentados. Fora da alegria oficial, reparei esta manhã que a ilha de areia que a força do esgoto erigiu nas marés baixas da baía de Luanda se havia transformado num campo de futebol. Duas equipas de três miúdos, rapidamente reforçada por mais alguns, chutavam uma bola para balizas de pneus e pedras, correndo de pés descalços sobre um pelado com epiderme de latas, garrafas de vidro, ferros retorcidos e outros sedimentos cortantes que o caudal do esgoto e o déficit higiénico das populações vêm fielmente depositando ali há anos. A irmandade da assistência ao prélio era tão irreal quanto as notícias da chegada à antecâmara do paraíso que os spots do regime propalavam. Desde a geral dos vagabundos que ainda estremunhavam de chapéu de pai-natal na cabeça debaixo dos arbustos que rastejam no calçadão da marginal, passando pela desusada atenção dos inúmeros guardas privados que costumam dormitar nas cadeiras de plástico que enxameam as entradas dos edifícios desta cidade, até aos camarotes dos curiosos que assomavam às varandas dos prédios defronte, cheios de cordas para secar roupa e onde, a crer em Bob Geldof, se encontram as t-shirts, as cuecas e os soutiens mais caros do mundo. Desconheço se os miúdos que pontapeavam a bola naquele oásis de areia e de sonhos teriam noção de que aquele poderia bem ser o seu último jogo ali. No local do improvisado estádio, o grupo empresarial financiador das obras da nova marginal prevê construir um casino. Na foz do esgoto, o jogo será, assim, outro. Quiçà seja esse, afinal, o sentido da mensagem do slogan oficial. «Ainda falta andar muito / mas estamos lá a chegar».

5 comentários:

yes! my love! disse...

«Ainda falta andar muito / mas estamos lá a chegar». RI

E nem imagina como eu queria acreditar que vamos mesmo chegar lá ~~

leve o tempo que levar ~~

F. disse...

Querem ver como estamos a chegar? Assistam então à TPA, de segunda à sexta, às 21h. Em ano eleitoral, acharam de mostrar as grandes obras que estão melhorando a vida dos cidadãos...

MãeAdvogada disse...

E ao que parece, um Paraíso com as avenidas em calçada portuguesa* :)


* " A Odebrecht, gigante brasileiro da construção, está a reformar os passeios das principais avenidas de Luanda, substituindo o concreto por calçada portuguesa, como está fotograficamente documentado na página 32 desta edição.

Este pequeno episódio é revelador de muitas e importantes coisas, como o estádio do renascimento da capital de um país destroçado por 40 anos de guerra e que está a usar as receitas do petróleo para substituir a África do Sul como principal potência do continente africano.

Ilustra ainda a crescente importância estratégica do vértice angolano no triângulo atlântico constituído pelos três principais países de expressão portuguesa.

A calçada portuguesa que ornamenta as avenidas de Luanda evidencia ainda a robustez dos laços afectivos e emocionais que ligam Portugal e Angola, um país onde se bebe água do Luso, cerveja Super Bock e café Delta e se come bacalhau à Gomes de Sá.

O segredo desta relação luso-angolana assenta numa coisa que Mira Amaral, presidente executivo em Portugal do banco angolano BIC, resume numa frase que tem tanto de simples como de verdadeira: "Ninguém sabe trabalhar tão bem em Angola como os portugueses." É por isso que Luanda é a mais importante das 18 escalas do roteiro africano de 17 dos maiores grupos empresariais portugueses, que hoje, Dia de África, o DN publica na página 31." hoje, no DN !!!

Roberto Ivens disse...

M&A,

Não estou assim tão convencido da bonomia do «triângulo». Sequer que a Odebrecht, mesmo que calçada, rime com Portugal...

MãeAdvogada disse...

Roberto,

para que uma coisa resulte, temos antes de tudo, que acreditar nela!

E neste caso, em particular, de acreditar no que ela já tem de indisponível, de inequívoco, e logo, indiscutível!

O Triângulo Lusófono do Altlântico é uma realidade que está muito para além das políticas dos países que o integram!

Aos políticos caberá apenas (?)aproveitar essa realidade para unir e promover o que de melhor ela tem...

Um pouco por todo o lado, há muito se promovem iniciativas, nesse sentido, levadas a cabo por Mui Ilustres Personalidades que acreditam muito que a Cultura é a melhor forma de promover a Paz, pela União dos Povos;

e estava a lembrar-me do excelente trabalho que Lauro Moreira, actualmente Embaixador do Brasil para a CPLP tem liderado ( http://www.dn.sapo.pt/2008/05/03/dngente/diplomata_carreira_brasileiro_dotes_.html );

mas também, de outras iniciativas como estas, de Silvino Évora, um jovem jornalista e investigador cabo-verdiano que não perde uma oportunidade de contribuir para essa causa ( para lá de triangular :) que nos une pela Língua e por tudo o que isso significa;

e seja através da investigação ( http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=50&id=15579&idSeccao=483&Action=noticia ) seja através da sua poesia também ( http://www.vozdipovo-online.com/conteudos/cultura/silvino_evora_canta_cabo_verde_em_espanha_no_festival_da_lingua/ )!

Estes são apenas dois exemplos que tive o prazer de conhecer melhor, mas muitos outros existirão, que não estão à espera do que os governos e desgovernos dos seus países poderão decidir a respeito :)