
Pela primeira vez desde que cá estou assisti a uma verdadeira festa angolana, das que por aqui são consideradas de arromba, muito próximas do paraíso, porque metem jantar, bar aberto e, depois, kizomba. Saber-se que este pack do sonho local fazia parte da agenda de uma reunião de empresa, que incluía palestra de presidente e diversas apresentações de números, metas e objectivos, será dispiciendo. Tudo começou, afinal, quando os gigantescos altifalantes do recinto começaram a tremer com o som arranhado que emitiam e a ameaçar desfazerem-se ante o portento da base rítmica da primeira kizomba da noite. Ainda sentados a saborearem os primeiros whiskies post-jantar, já de pé no bar a forçarem a antecipação da festa ou em redor do enorme plasma onde uns miúdos russos cheios de garra aviavam umas estrelas holandesas a quem de repente falhara a luz, os corpos começaram por abanar-se como se um silencioso formigueiro os invadisse. Momentos depois, já todos no recinto dançavam. Todos menos este escriba, cujos dotes de dançarino, para lá de uns pré-históricos e cirúrgicos slows arrastados por discotecas às escuras, lhe deram a fama de insigne cabide dos casacos dos mais foliões. O mais impressionante da coisa ali é que toda a gente dançava com toda a gente, num ajuntamento e partilha de parceiros que tinha tanto de invulgarmente democrático quanto a minha experiência por aqui ter-me-á já demonstrado que esta sociedade será ainda mais estratificada do que qualquer uma do Ocidente que eu conheço. O motorista a dançar com a directora, a telefonista com o administrador e o presidente com todo o mulherio que se dispõe a aparecer-lhe à frente e que aproveitam o momento para lhe deixarem gravadas as impressões digitais do ondular das ancas. Aliás, os angolanos parecem preferí-las grandes, largas, bojudas e elas percebem bem isso pois são sempre as mais opulentas, de rabo, coxas, às vezes barriga e, outras tantas vezes, isto tudo junto, quem primeiramente se lança à pista, com o mesmo à-vontade de uma super-modelo no início de um desfile de Yves Saint-Laurent. E mesmo quando calha o par masculino revelar os mesmos dotes avolumados, é estranho verificar-se que nem assim eles perdem a harmonia na dança e, quer a área de 3 m2, quer os duzentos e tal quilos que ambos formam, não os impedem de se elevarem até ao nível da elegância de um pas-de-deux de um casal de bailarinos do Bolshoi. Igualmente impressionante aqui é a capacidade que todos demonstram para se transfigurarem, numa linguagem corporal que contagia todas as poses, movimentos e gestos e cujos significados são partilhados alegremente por todos, numa estranha cumplicidade que torna aquilo tudo, a meus olhos, ainda mais exótico. Todo o tipo de ajuntamentos são aqui permitidos, desde os rabos solitários que descem ao nível do chão para abanarem garrafas pousadas, passando pelas parelhas a agarrarem-se numa partilha de códigos de dança que parecem próprios, até à multidão que se movimenta a um só gesto, como se de antemão cada um soubesse exactamente o ritmo a dar a cada som que lhes chegasse. Embora juntos, cada um parece manter-se concentrado no seu próprio frenesim, num somatório que potencia exponencialmente a energia do grupo. Perante tamanha efervescência, um atento sul-africano presente não perdoaria. «
Colocassem cinquenta por cento desta energia no trabalho e Angola seria o país mais produtivo do mundo». Felizmente para os
kizombados, o dia seguinte era domingo.