Uma vez, no Lobito, depois de um jantar fora, chegamos ao hotel onde estávamos hospedados e parámos o carro junto de uma tabuleta que informava da proibição do estacionamento defronte, «excepto clientes do hotel». Tão óbvia me parecia a situação que saí displicentemente do lugar do morto para afastar os quatro pinos de plástico pintados às riscas vermelhas e brancas que guardavam os lugares. E não é que me sai disparado da porta do hotel um velho paquete vestido com uma jaqueta de figurante de filme épico aos berros de «Alto aí»?! Recordo o colarinho mais estrilhaçado que já vi na vida, com milhentos rios de fios a escorrerem-lhe para o peito da camisa borolenta que já há muito deixara de ser branca, uma catarata de riscos vermelhos saídos da gravata muito larga que fazia um chumaço de nódoas no lugar do que pretenderia ser um nó e que acabava num rabo de bacalhau que soçobrava muito antes de chegar ao umbigo e a encimar a figura um chapéu azul e vermelho roído nas pontas que teriam sido debroadas a dourado, num quadro cujas pinceladas lhe davam um ar de almirante que há muito perdera as graças do mar. «Quem lhe deu autorização para mexer nisso?» Com o maior dos desassombros informei-o que estávamos hospedados no hotel, aquele mesmo hotel. Qual quê!? A informação parecia não ter esmorecido minimamente a fúria fardada do homem, pelo que continuou a entoá-la numa crescente estridência de gritos e gestos. «Mas você não devia ter mexido nessas coisas, pois esse é o meu trabalho!» Após mais alguns esforços, inglórios, para criar alguma luz naquela escuridão, concluí que, não sendo um problema de língua, poderia muito bem sê-lo de linguagem e decidi então deixar o caminho aberto para a entrada naquela liça cada vez mais surrealista do meu colega, angolano, condutor do automóvel. Sem qualquer sucesso. O homem continuou a repetir até à exaustão o nonsense do refrão da sua exclusividade de guardião dos mecos, pelo que daí a minutos o carro já estava estacionado a cinquenta metros daquele local. Ainda perguntei aos funcionários da recepção, que presenciaram o incidente na rua, se havia por ali um livro de reclamações, mas olharam-me como se fosse chinês, não sei se o livro ou se a reclamação. Durante a posterior conversa no bar com o grupo de colegas que me acompanhavam, interroguei-me sobre o sentido, sociológico que fosse, do sucedido. Resquícios de algum tipo de funcionalismo? Excesso de zelo militante? Falta de formação no serviço ao cliente? Mera senilidade? Seria um angolano a decidir a charada. Uma gasosa e tudo teria ficado logo resolvido.
domingo, 19 de outubro de 2008
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1 comentário:
Muito bom, como de costume :)
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