
Quando era miúdo detestava a Páscoa. Pelo cheiro a hóstia que parecia apoderar-se das pessoas, nas ruas mas também em casa, pela exibição
non-stop de missas na TV, prolongada por transmissões directas e em latim do Vaticano, pela troca das valentes
matinées de
coboyadas por piedosos filmes italianos sobre os últimos dias de Jesus Cristo, em que até o carrasco chorava a meio das vergastadas, pela obrigação de comer peixe com amêndoas durante a sexta-feira santa e, basicamente, por me serem impostas nesse período regras, especiais face aos restantes dias do ano, que me eram incompreensíveis e causavam desconforto. Desde logo, a obrigação de escolher roupa nova. Agora, compreendo melhor que, vindos do Inverno, a chegada à Primavera convide à renovação de muitas coisas, inclusivè, de agasalhos. No entanto, o que poderia ter de atractiva uma ida às compras na pré-história dos
shoppings dissipava-se rapidamente quando se chegava ao fatídico acto das escolhas finais. Ter dez ou doze anos e a mãe ao lado a organizar uma equipa de jurados entre os outros clientes da loja para me convencerem de que aquela camisa cheia de cornucópias e com uns colarinhos que chegavam às orelhas me
ficava a matar, para além de que seria um óptimo substituto para a
t-shirt coçada que levava grudada ao corpo, ainda se mantém hoje como uma recordação bem deprimente. Curiosamente, nos tempos mais recentes, finalmente tesoureiro de uma família com três mulheres, não deixo de me rever no espírito
pret-a-porter da quadra, embora mantendo a azougada memória herdada da infância que me permite ser implacável a partir do terceiro ou quarto «
este vestido é tão lindo, papá!» Um outro trauma vem do contexto de religiosidade bafienta em que a Páscoa se desenrolava e que originava que as duas semanas de
férias de escola se transformassem quase automaticamente em
frequências de igreja. A anormal concentração de missas, catequeses, confissões, vias-sacras e procissões obrigavam a uma inaudita memória para se decorar a cor das roupas dos padres ao mesmo tempo que tentava compreender como é que o meu parceiro de bilhar havia conseguido
meter a preta a uma só tabela. Fugir a assistir a, pelo menos, uma via sacra durante este período era uma tarefa heróica porque as mães tendiam a julgar que só assim poderiam livrar os filhos de todos os pecados mortais originados pelos alternativos jogos de matraquilhos e
snooker, pelas sangrentas e bem mais animadas
matinées no cinema ou pelas futeboladas de mercurocromo jogadas no pelado de saibro do adro da igreja. Lembro-me que o castigo divino provocado pelo pecado da ausência a uma via-sacra era mais ou menos equivalente ao de apalpar as colegas durante a catequese. Mas o supremo
clímax pascal dava-se após a procissão nocturna do Senhor Morto, quando o silêncio acusador de um cortejo de homens vestidos de roxo, encapuzados e armados de archotes, passando por entre filas cerradas de beatas que empunhavam terços e rezas, era interrompido pelo assustador barulho das
racas de pau que me acordavam dos pesadelos onde eu me debatia com Judas Iscariotes, Pilatos, uma porrada de judeus, romanos, fariseus, escribas, centuriões e toda a sorte de demónios que tinham, nessa altura, o vício de se reunirem debaixo do meu travesseiro.
3 comentários:
É sempre um gosto lê-lo.
Maria,
Igualmente ser lido...
um prazer, sim! Espero que com as mudanças geográficas não fiquemos privados deste prazer.
e ri aqui com os fantasmas de travesseiro do menino travesso.:-)
Feliz Páscoa , Roberto!
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