quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Poema à Mãe

No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.
Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.

Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha – queres ouvir-me? –
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;

Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;

Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...

Mas – tu sabes – a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade, «Os Amantes sem Dinheiro»

2 comentários:

A Menina da Lua disse...

De vez enquando passo por aqui e gosto...porem hoje, com este lindíssimo poema, gostei ainda mais...

Sensível o seu olhar de ver as coisas... e tambem a maneira como as escreve.

Laura disse...

Penso sempre, ao ler este belíssimo poema, que

- há mães de excepção que sabem que os filhos, mesmo quando se refugiam nas ' palavras duras', aindam gostam das rosas brancas do tempo inicial

- há filhos de excepção que percebem que as mães não ignoram nem esquecem absolutamente nada - nem que as noites são longas, nem que as pernas cresceram -, e que também nunca deixaram de ser o tal menino adormecido no fundo dos seus olhos

Lucky ones!