domingo, 23 de novembro de 2008

T.A.P.A.

(Para quem não saiba, um automóvel aqui conduzido por estrangeiros, que tenha estacionado num qualquer local, mesmo que ermo, sob o olhar de um indígena, mesmo que a três quilómetros de distância, passa a estar automaticamente sujeito à Tabela Angolana do Parqueamento Assistido.) Naquela noite, mal pagamos o jantar, apercebemo-nos logo do problema. A conta havia sido redonda, sem trocos, pelo que não teríamos a habitual nota de duzentos quanzas para pagar o parking, ainda por cima distante do restaurante. Chegados ao carro, a sofreguidão do nosso guarda, zarolho e com falta de três dentes na montra, logo nos lembrou do erro. Ainda basculhamos nas carteiras, a ver se conseguíamos remediar minimamente a coisa, mas não se conseguiu juntar mais do que sessenta kuanzas, muito abaixo do mínimo de cem kuanzas admitido na Tabela para um estacionamento na zona dos restaurantes da ilha de Luanda. Pôs-se o carro a trabalhar, que é como a Tabela aconselha a fazer-se para acelerar eventuais desacordos de pricing, baixou-se o vidro para pagar e adicionou-se a informação de que na próxima vez poderiam dobrar a factura. Qual quê! O homem perdeu a sofreguidão inicial e pôs-se logo a recitar uma cantilena sobre ter-estado-ali-a-trabalhar-e-não-a-brincar, que-até-nem-tinha-deixado-que-partissem-faróis-e-retrovisores e que por isso não-concordava-com-a-paga-apresentada. Sendo a cantilena tão conhecida quão a Tabela, uma e outra aliás indissociáveis da corrupção mental que lavra na Angola actual, respondeu-se-lhe com a tradução portuguesa do take it or leave it. A partir daí o zarolho pôs um ar de ofendido. Devolveu-nos as notas e avisou-nos de que poderíamos ir, mas que iria partir-nos o vidro retrovisor do jipe. E tão rápido foi a dizer isto quão a atravessar a rua para recolher um calhau do separador central. A veemência da ameaça, tanto a dita quanto a demonstrada, dera-lhe subitamente uma credibilidade que o enviezamento do olhar lhe retirava. O condutor ainda saiu do carro para tentar apaziguar ânimos com a promessa de um retorno próximo, mas o mais que conseguiu foi atrair um outro indígena arrumador, este coxo, naturalmente solidário com o colega. Fiquei a pensar que, mesmo com eventuais dirtúrbios na pontaria, duas pedras sempre teriam maior probabilidade de acertarem no vidro do jipe. E assim ficaram todos a tagarelar, durante os mais pesados cinco minutos que seguramente vivi em Luanda, até que o condutor se decidiu a pedir a intervenção de um segurança de um restaurante defronte, que assistia a tudo à distância embora sem demontsrar muita vontade de se envolver. Enquanto aguardava por uma resolução daquela assembleia-geral entre condutor, arrumadores e segurança, sentado no lugar do morto e a pensar na possibilidade de poder sê-lo no sentido literal do termo, não conseguia deixar de imaginar que só mesmo muito ceguetas e muito pernetas não conseguiriam acertar um calhau numa superfície vidrada de um metro de largura por outro meio de altura. E como já visse o vidro estilhaçado e não descortinasse os porventura maiores estragos da pedra, saí do carro com o telemóvel em punho para ameaçar o segurança de que iria chamar a polícia e protestar junto da gerência do restaurante sobre a falta de capacidade para proteger os seus clientes. Foi remédio santo. O segurança ruminou algo aos outros dois, o zarolho descobriu o sorriso mais desdentado da noite, largou o pedregulho, aceitou reverentemente os sessenta kuanzas e desejou-nos boa viagem. Saímos dali a pensar que acabáramos de ter a nossa mais importante lição sobre a T.A.P.A..

1 comentário:

Hugo Rebelo disse...

isso é que foi aventura! Medo!
mais cuidado nas contas.
saudações


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