domingo, 28 de setembro de 2008

Congeminações de lounge

Aeroportos. Durante muitos anos não conheci nenhum. Nunca precisei. A morar no norte de Portugal, junto ao mar, que interesse maior haveria para procurar o que quer que fosse fora dessas latitudes que me obrigasse a atravessar a fronteira? Tirando os chocolates de Tuy, o marisco de Bayona, o bacalhau de Santa Tecla, os hipers de Vigo ou as sereias de Sanxenxo e Portonovo? De repente, a coisa mudou. Não o Norte Litoral ou a Galiza, claro, apenas o sentido da minha vida. Carreira, quero dizer. Se é que carreira alguma vez seja vida. E se é que esta, também, tenha, ou faça, algum sentido. Afinal, agora, visito um aeroporto, lá fora, pelo menos, cada três meses. Se não mais. Em Angola, mais. Porque, por aqui, ninguém faz mil quilómetros de carro. Seguidos. Nem haverá gasolineira para abastecer tanta estrada. Mesmo que se conduza num dos mais renomados reinos do petróleo. É só ver as filas, às vezes de centenas de metros, aos domingos de manhã, junto à estação de abastecimento da Sonangol, na marginal de Luanda. Fora aos outros dias da semana. Para se ir da capital a Benguela, por exemplo, há que usar o avião. A menos que se queira perder quase meio dia na viagem. Como já fiz. Arriscando a vida numa curva apertada durante a subida de um monte, porque o condutor se assustou com um autocarro que lhe surgiu repentinamente na frente. «Repentinamente», justificava-se ele, mas eu bem que o senti a carregar no pedal da embraiagem, em vez do dos travões, quando o autocarro nos surgiu no final, da curva e da subida. Que foi o que nos valeu. A subida. Tivesse sido numa descida e o atravessar da estrada com o slide tipo rocket da pedalada embraiagem bem que seria o nosso fim. É o melhor que têm os aeroportos. Enquanto se espera, no privilégio do lounge com cheiro a croquete e a sovaco de turista, até que se tem tempo para congeminar sobre a morte. Mesmo se num acidente de carro.

sábado, 27 de setembro de 2008

Dulce Pontes - Fado Português

Ouvir isto por ouvidos de tuga, em África, assaltado das rotinas da distância por um longínquo nevoeiro de frames que disparam impiedosamente lembranças de cheiros, sabores, sussurros, prazeres, sensações mal amanhadas e outros signos igualmente mal decifrados, equivale a ser apanhado pela silenciosa explosão de um vulcão, que se diz ser galináceo e cuja lava se espalha deliciosamente pela epiderme. E que dura, precisamente, quatro minutos e vinte e dois segundos, num magma onde a memória dos sentidos se confunde com os sentidos da memória. Há quem chame a isto saudade. Seja. E enquanto desvio os olhos para o local onde arrumo a mala-de-cartão, apetece-me dizer, como se um magala a sonhar com rabanadas. «Adeus e até ao meu regresso.»

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

E já vão três

Em plena crise na banca internacional, com os gigantes norte-americanos a caírem como búfalos em dia de inauguração do caminho-de-ferro, Angola dá mostras da pujante saúde do seu sistema financeiro. Em apenas uma semana, os accionistas maioritários de mais dois bancos decidiram reconhecer o esforço participativo dos seus parceiros locais e convidaram-nos para reforçarem para 49,9% a sua posição. Depois do líder BFA, chegou agora a vez do Banco Totta de Angola e do Millennium. Intervenientes na operação, para além dos omnipresentes Sonangol e Isabel dos Santos, mais dois outros conhecidos empresários, já accionistas em bancos locais. Sinal de que a pirâmide da distribuição da riqueza que floresce por estas bandas se arrisca a tombar ante a magreza do sopé. Dúvidas sobre o axioma da economia angolana? That’s politics, stupid!

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Génios em garrafas de vintage

Por estes dias, tenho recordado o que me disseram uma vez, um pouco antes da minha partida à descoberta de Angola. Que não deveria esperar encontrar por aqui muita «gente de qualidade», mas que, ainda assim, sempre haveria alguns «génios». Tirando o habitual exagero das sumarizações, ainda para mais vindas de um yuppie angolano que decidiu arriscar a carreira no regresso à pátria de que aparentemente não tem em grande consideração, julgo ter percebido o sentido do aviso. O de que o mais difícil desafio, por estes lados, é o de não se deixar levar pelo status reinante e prescindir de certos standards de actuação. Talvez por isso o primeiro génio de Angola possa ser José Pedro Morais, ministro das Finanças revelação e personalidade do ano em diversas apreciações internacionais. Apreciações que ele próprio não hesita em fazer em defesa, por exemplo, da lusitanidade. E talvez que o segundo génio possa ser um sul-africano, também ministro das Finanças e detentor de nome luso, Trevor Manuel, por sinal o mais antigo detentor deste cargo no mundo inteiro. Na manhã em que anunciou resignar, junto com outros dez ministros do governo do ex-presidente Mbeki, o rand desvalorizou 30 cêntimos contra o dólar e a Bolsa de Joanesburgo ameaçou cair a pique. Manuel teve então de interromper uma reunião com o FMI em Nova Iorque para esclarecer que a resignação era deste mas não do próximo governo para que tudo voltasse outra vez aos trilhos. Quem sabe se, em África, os génios não vivem, afinal, em garrafas de Porto vintage?

sábado, 20 de setembro de 2008

Globalização natural?

Depois de ter passado uns dias isolado nos arredores de Joanesburgo, num lodge que pretende vender packages de horas de ensinamentos em ambiente bucólico, na vizinhança de um parque público que oferece a quem por lá anda longos espaços relvados, canteiros de flores cirurgicamente escolhidas desenhados a picotado no terreno cheio de árvores e sombras, um lago que se espraia entre pequenos diques de rochas e até uma pequena montanha que esguicha uma catarata duvidosamente natural, tudo vigiado por cisnes, patos, pássaros e patrulhas de polícias que tentam evitar o surto de violações que ocorrem naquele espaço, enfiado numa sala com outras pessoas a assistir a um curso sobre liderança de equipas, em que Alec Ferguson, o coach do Tiger Woods e o treinador da selecção sul-africana campeã de mundo de rugby eram a santíssima trindade do grupo de monitores, eles próprios a não desprezarem o sonho de chegarem a gurus de alguma coisa que lhes fizesse luzir o sorriso na capa de um best-seller exibido nas pancartas dos supermercados, passeei-me uma tarde num shopping em Eastgate, que será três a quatro vezes maior que o português Colombo e acabei a interrogar-me se a globalização não estará a matar as salutares diferenças que sempre houve entre pessoas, povos e culturas e se o que consideramos evolução natural não estará afinal a transformar-nos em rebanhos de consumidores famintos que pastam nos mesmos prados de cartão de crédito e ar condicionado das mesmas lojas que a Zara, a Nike, o MacDonalds ou o Woolworths mantêm abertas para que possamos ter a sensação de que somos livres de lá sair.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Máxima velha e relha

Dizia-se à boca cheia em alguns cantos que muita coisa iria mudar depois das eleições. Designadamente que seria o fim da mobilidade dos candongueiros no centro de Luanda, que o governo fixaria o dolar a valer bem menos que 70 kwanzas, que diversos musseques desapareceriam do mapa de um dia para o outro, que centenas de milhares das pessoas que deambulam na capital acordariam um dia bem no interior do país e que seria enfim liberalizado o mercado dos licenciamentos, desde a construção de hoteis e shoppings até à exploração mineira. Mais importante que tudo, passaria a privilegiar-se os investimentos na agricultura, facto extraordinário num país que tem tanto de deficitário de produtos e know-how nos sectores da produção alimentar quanto de superavitário em terrenos férteis não cultivados e na propaganda a slogans do tipo «em solo angolano estrangeiro não mexe» com que as autoridades vêm preferindo manter o capim a saciar a fome de tantos. Mas, afinal, o primeiro acto simbólico da anunciada mudança acabou por ser a compra de 49,9% do Banco de Fomento de Angola, líder do mercado e filial do português BPI. Nova postura do regime? Nah, trata-se da mesma velha postura parasitária de sempre. A de sugar o tutano dos investimentos rentáveis e cruciais no desenvolvimento da economia angolana e sem que os accionistas locais acrescentem verdadeiramente alguma coisa, para lá da velada ameaça da Sonangol em retirar depósitos e secar tesourarias aos renegados. Sobra então a velha e relha máxima de que não é Angola quem precisa do mundo mas, sim, este daquela.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Genocídio à hora do lanche

Os milhares de civis em fuga, na sua maioria idosos, doentes, mulheres e crianças, haviam-se refugiado naquela cidade por saberem que eles estavam lá estacionados e lhes dariam protecção e segurança. Que é precisamente o objectivo número um dos capacetes azuis das forças de manutenção de paz da Organização das Nações Unidas. No entanto, depois de um cerco cerrado de vários dias, o exército invasor exigia que o batalhão da ONU abandonásse a cidade para mais facilmente poderem desarmar o que consideravam elementos da guerrilha local infiltrados na população civil. Reforçaram a negociação dessa retirada contra a entrega de alguns soldados tomados como reféns. E os capacetes azuis fizeram-no. Concedendo aos invasores o espaço, o tempo e a liberdade para a matança de todos os homens com idades entre os 12 e os 77 anos, num total de sete mil e quinhentas vítimas. Este genocídio não ocorreu no Chade, no Ruanda, na Somália, no Darfur ou noutro qualquer lugar da África suspeita do costume, mas sim na mui europeia Bósnia e sob os olhares, televisivos de todas as refeições, da ainda mais civilizada Europa Comunitária. Hoje, pelos vistos, ilibámo-nos. O que poderá querer dizer que, no presente, tudo poderia voltar a ocorrer da mesma forma e, se calhar, continuaríamos todos a lanchar em frente ao televisor.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Regresso à normalidade

Depois da intensidade dos últimos dias, o regresso à normalidade. Um amigo meu, que conduzia sozinho o seu carro em Luanda, foi mandado parar pela polícia após ter-se internado numa rua supostamente de sentido proibido. O facto da tabuleta com a dita proibição se encontrar afinal cravada no chão do passeio, cerca de vinte centímetros acima do solo, por detrás de outros automóveis estacionados na berma e, portanto, sem ser visível a qualquer condutor, foi considerado um pormenor perfeitamente dispiciendo. Como contra-argumentar a irracionalidade de ver assim servida uma multa acaba inevitavelmente por ser o intercurso para o regateio do montante da gasosa-salvadora-de-outros-gastos-e-canseiras, o condutor decidiu-se por copiar o que se lembrava de ter já ouvido relatar a amigos e conhecidos envolvidos em semelhantes sarilhos e estendeu uma nota ao polícia. Erro crasso. A dura reprimenda da autoridade foi imediata. Ficou então este meu amigo a saber, mais os meus, concerteza que os outros dele e assim como quaisquer eventuais interessados, que a gasosa deve, preferentemente, ser servida dentro das folhas do livrete do veículo. Por mim, até concordo que não se deva ferir susceptibilidades alheias.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Afinal nem tudo será assim tão feio

Entre os títulos «Angola: eleições estão a ser "um verdadeiro desastre"», estrondosamente difundido por todos os noticiários durante o escrutínio eleitoral e «Missão europeia considera eleições em Angola como "transparentes"», timidamente divulgado após a contagem das urnas, parece ir a diferença do famoso «Prognósticos? Só depois do jogo!»

domingo, 7 de setembro de 2008

Memória de uma frase batida

Confesso não ter muita motivação para fazer análise sobre as eleições em Angola, estas, as próximas e as que se lhes vierem, se vierem, a seguir. Por correr o risco de não acertar com as pinceladas certas num quadro que se parece com os de Noronha da Costa. Também por ter noção de transportar no olhar, como sobre tudo o que vejo por aqui, a inevitável sombra de um certo eurocentrismo e, assim, recear não poder cumprir, como me esforço sempre por fazer, a recomendação de Mizoguchi. «Deve lavar-se os olhos entre cada olhar». Daí preferir continuar a fixar-me na paisagem emotiva do filme do meu dia-a-dia em Angola e na relação com os seus principais actores. As pessoas. Quanto às eleições angolanas, como de resto ao déjà-vu da vida política local, fazem-me sempre vir à memória uma frase batida. «O caminho faz-se caminhando». Acrescentando eu ao poema de António Machado. E ao de cada um no seu próprio ritmo.

sábado, 6 de setembro de 2008

Charada do funcionalismo

Em quase tudo o que é local produtor de um serviço ou acto administrativo com o trade mark de Angola cresce o bichinho do funcionalismo. Que poderá ser definido como a tentativa de apropriação da realidade por parte dos detentores de uma determinada função pública. Trata-se de uma charada em que os próprios autores se mostram habitualmente disponíveis para esmiuçarem a racionalidade das barreiras do que eles próprios criaram, para mais facilmente depois as ultrapassarem, não raras vezes, a saltos de gasosa. O mais inocente dossier entregue numa qualquer repartição angolana, que inclua a habitual e interminável bateria de atestados, certidões, requerimentos, comprovativos, quer nas versões originais quer nas de cópias certificadas, só será finalmente aceite se lá estiverem toooodos os papéis. Se faltar um qualquer documento, haja um carimbo fora do lugar, veja-se um selo com a côr errada, note-se uma assinatura suspeita, apanhe-se um erro ortográfico, vislumbre-se uma diferente grafia qualquer, conclua-se por uma mancha invisível, volta tudo para trás. A lógica é que um processo completo a 99% continua a ser um processo incompleto. Num insofismável diktat que os guardiões do edifício burocrático angolano, aliás sustentado nos alicerces da administração que os portugueses aqui deixaram há quarenta anos atrás, não ousam sequer sonhar que se possa pôr em causa. Lembro-me da gravidade do erro cometido no meu primeiro pedido de visto para entrar em Angola. Teve como destinatário o Consulado Geral do Porto da República de Angola quando deveria ter sido dirigido ao Consulado Geral da República de Angola no Porto. Diferenças? Devolução imediata de todo o dossier de cerca de duas dezenas de documentos e mais três semanas de espera.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Incomodados

Para lá do circunspecto das notícias sobre as eleições angolanas, que o Ocidente vigia como se estivesse em causa o último suspiro da democracia no mundo, há todo um país que deixou de trabalhar para se banhar nos comícios do último dia da campanha eleitoral. Para atingir o score dos 2 milhões na festa de encerramento do MPLA e assim cilindrar a concorrência, o governo teve de decretar tolerância de ponto. Afinal, por melhor que seja o bebício, não se ganha um comício sem os figurantes do 9 to 5. No dia seguinte, vésperas de eleições e também conhecido por período de reflexão, metade dos luandenses permaneceram em casa. «Incomodados». Que é como se justificam por aqui as faltas ao trabalho por doença. Seja lá ela qual for.