quarta-feira, 27 de maio de 2009

Sombras de Luanda

Foto de Roberto Ivens

A menos de duzentos metros do restaurante do Deana SPA, cujo nome, «Complexo Gastronómico Bay Side», já merecerá uma estrela no Guia Michelin, há um homem sepultado na sombra de uma árvore. Aparenta ter pouco mais de vinte anos e encontra-se mutilado na perna direita que lhe desaparece logo após a curva do joelho e acaba num toco mal cicatrizado e ainda com vestígios do osso e, também, nos braços picados por diversos golpes, irregulares, nítidos, mas espantosamente secos de sangue, cuja profundidade lhe consome a carne até ao limite de doer a quem a vê. Jaz ali os dias e, quiçá, as noites quase sempre deitado, arrastando-se no sentido da sombra da velha acácia quando ela acede em fazer-lhe companhia e rebolando sobre si mesmo na busca do biombo do tronco quando necessita de maior intimidade. Por todo aquele corpo perdido no empedrado do passeio esburacado da marginal e que parece repousar de uma batalha de que apenas se conhece os despojos, há crostas de uma urgente, embora muda, piedade que o cobrem da cabeça ao pé. Não se lhe percebe o que responde quando questionado, mantendo-se absorto nos mesmos gestos, na dor, na insanidade, ou tudo junto, antes parecendo mover-se num permanente estado de delírio, a remexer nas partes do corpo que lhe faltam ou a revirar a cabeça no sentido dos céus, quantas vezes rindo ou repetindo uma lenga-lenga imperceptível. A primeira vez que o vi, a meio de um jogging de fim-de-semana, lambia freneticamente com o indicador direito o que restaria de uma pequena embalagem de manteiga como as dos aperitivos dos restaurantes e, perante a garrafa de água fresca que lhe serviram, pareceu afogar-se na sofreguidão do longo gole, compulsivamente gesticulado como se ressuscitasse num solo de trompete. Interrogo-me se, do seu palco, conseguirá perceber a audiência que não pode deixar de o ver por ali, eu, os milhares de outras pessoas que lhe passam defronte, a pé ou de carro, os assistentes sociais que desconheço se Luanda possui, o pessoal das inúmeras ONG cujos nomes vejo profusamente pintados nos jipes, os pastores das imensas igrejas que por aqui florescem, os cidadãos cuja sensibilidade não se fica apenas pelas ofensas com quaisquer críticas a Angola, os políticos e governantes que se habituaram a jurar fidelidade aos seus. Receio bem que, tal como Simão Kapiangala, o homem-sombra seja apenas mais um entre os milhares de bastardos que deambulam por Luanda, completamente entregues ao Deus-dará. Com o senão de, neste cantinho do paraíso, Deus raramente dar alguma coisa aos que não farão parte do seu rebanho.

3 comentários:

ordralfabetix disse...

Um belo texto, Roberto. Linkei-o para um jornalista que tem uma ONG e costuma ir a Luanda.

http://cheiroapolvora.blogs.sapo.pt/

Roberto Ivens disse...

Ordralfabetix,

Espero que façam dele, texto, um bom proveito...

Anónimo disse...

Obrigada. Pela sensibilidade.E pela DENÚNCIA.

Maria