segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

A realidade da ficção

Sensação estranha esta de se ser testemunha da fuga de um personagem de um livro que se leu e que, de repente, se apresenta, de carne e osso, à nossa frente. Ou, como neste caso, a nossos pés. Com a carne e com os ossos descritos no livro donde descarnou. Aconteceu isso um destes dias, próximo da praça do Kinaxixi. O personagem era Simão Kapiangala, saído do livro de Pepetela, «Predadores». Ex-guerrilheiro das FAPLA, vitimado na guerra civil por uma mina, nunca perdoou ao médico cubano a amputação das pernas e do braço direito. «...Porquê não me deixaste morrer, bastava fumares um cigarro a mais... bastava mesmo só acabares a ponta de cigarro que tinhas nos dedos, para a mina ter completado a sua obra, muito melhor que ficar agora assim...». Sobrevivia, sobrevive?, de esmolas na rotunda do Kinaxixi, quando não vinha, virá?, a polícia com preocupações sanitárias e o levava, levará ainda?, e a outras vítimas de poliemielites, minas e mutilações várias, até «...umas barracas longe do centro, onde davam rações de combate para comerem durante dois dias e depois os esqueciam para morrerem mais depressa.» Demorava depois a regressar às ruas de Luanda, era até o último a chegar, mas chegava sempre, «...se enrolando para rebolar sobre o asfalto incandescente». E quando as dores lhe invadiam o corpo, «... um relâmpago lancinante que lhe atravessava a cabeça como rasto de bazooka», Simão toureava os carros a meio da via «...levantava o braço esquerdo no ar, gritava para os motoristas, me mata já, passa por cima de mim...» e «...por vezes se punha mesmo um pouco mais para o lado, suicida, obrigando os carros a fazer um desvio pronunciado, esquivando o corpo oferecido em redenção.» O Simão que agora encontrei não se põe a meio da via, antes fica estacionado no separador central, junto ao semáforo que controla uma das entradas na praça, à espera que os carros parem para lhes bater na porta com os nós dos dedos sobrantes e para obrigar os motoristas distraídos a abrirem o vidro e a baixarem os olhos para o barulho fantasma. Perante este e outros tantos quadros que se vêem expostos por aqui, nem sempre previamente emolduráveis por letras, é difícil racionalizar o esmolar da consciência, pelo que me tenho limitado a poupar de seguranças, arrumadores, paquetes, polícias e outros pedintes mais reivindicativos.

4 comentários:

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

doeu-me a alma ao ler o seu texto...acabei-o a custo..

"raios partam a vida e quem nela anda"...

Carlos Alberto Jr. disse...

Caro, pelo seu belo trabalho, indiquei o blog ao Prémio Dardos.

Um abraço,

"Com o Prémio Dardos reconhecem-se os valores que cada blogger emprega ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc. que, em suma, demonstram sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre suas letras, entre suas palavras. Esses selos foram criados com a intenção de promover a confraternização entre os bloggers, uma forma de demonstrar carinho e reconhecimento por um trabalho que agregue valor à Web.
Este prémio obedece a algumas regras:

1) Exibir a imagem do selo;

2) Linkar o blog pelo qual se recebeu a indicação;

3) Escolher outros blogs a quem entregar o Prémio Dardos."

Roberto Ivens disse...

Julia,

O hábito tende, mesmo, por aqui, à insensibilidade. O que acaba por ser um alívio. Evitando, por exemplo, que a alma esteja permanentemente com fita vermelha, como no rastreio de Manchester...

Roberto Ivens disse...

DdA e JPT,

Obrigado pela lembrança, seja lá a distinção o que fôr... Abraços.