domingo, 14 de junho de 2009

O arquipélago da insónia

Um destes fins-de-semana, numa sombra da praia do Cabo Ledo, dei por terminada a leitura do último livro de Lobo Antunes. No dia seguinte, recomecei a lê-lo. Do princípio.
De onde me virá a impressão que na casa, apesar de igual, quase tudo lhe falta? As divisões são as mesmas com os mesmos móveis e os mesmos quadros e no entanto não era assim, não era isto, fotografias antigas em lugar da minha mãe, do meu pai, das empregadas da cozinha e da tosse do meu avô comandando o mundo, não a presença, não ordens, a tosse, um lenço saía-lhe do bolso e desarrumava o bigode, o meu pai prendia o cavalo na argola e a seguir apenas o restolhar da erva que esse sim, mantém-se, embora seco e duro até depois da chuva, na varanda os campos que conheço e não conheço, o renque de ciprestes que conduzia ao portão e além do portão com um dos pilares tombado os sobreiros e o trigo, a vila cada vez mais distante onde as luzes acentuam o escuro, um sítio de defuntos em cujas ruas trotava abraçado ao meu pai, assustado com os postigos vazios e a certeza que nos espreitavam nos amieiros da praça no tempo em que nada faltava na casa, a minha mãe no andar de cima a perfumar baús, a chávena da minha avó no pires e ela fixando-me com um olhar de retrato que atravessava gerações vinda de um piquenique de senhoras de bandós e cavalheiros de colarinho de celulóide comigo a pensar se toda a gente continuaria aqui em conversas que o relógio de pêndulo afogava no coração pausado, uma tarde encontrei a chávena e o pires num canto da camilha e a cadeira sem ninguém, uma outra tarde os baús do andar de cima cessaram de cheirar só que dessa ocasião automóveis no pátio, senhores que me despenteavam numa lástima amiga
- O órfão
Não conheço ninguém que escreva em português tão bem quanto Lobo Antunes. Aliás, não conheço ninguém que escreva tão bem quanto Lobo Antunes.

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