domingo, 28 de dezembro de 2008

Amores,


Não foi Natal porque vocês não estiveram aqui. Fisicamente. Recebi convites de colegas para me juntar a eles, mais às famílias, na ceia e recusei. E acabei por ter dificuldades em justificar-me. Mais por eles e pela insistente cegueira da simpatia e solidariedade do que por mim. Como dizer-lhes que uma família não se substitui? Muito menos no Natal? E, bem pior, que preferi trocá-los pelo Live Messenger? A minha estreia nesta orfandade seria assim concluída numa ceia-buffet de hotel, numa bóia que acabei por partilhar com um outro náufrago igualmente perdido das graças da quadra, a mastigar um insosso bacalhau angolano da Noruega, a ruminar sobre a estranha técnica, certamente indiana ou chinesa, de fazer com que um bolo-rei saiba a pão-ralado e a ansiar, inutilmente, que o tinto do Douro conseguisse o milagre de apaziguar sabores tão falsos e a devolver-me a memória dos meus gostos. Mas, na verdade, juro-vos que nunca saí do canto de cá da longa mesa de quase 6.000 quilómetros, com epicentro na nossa sala de jantar, onde permaneci durante toda a noite, em silêncio, imóvel, a cumprir a minha pena de pai desta vez mal-comportado e a olhar sobretudo para vocês, proibido de vos tocar, ou de vos falar, mas não de me sentir próximo de certas memórias. Do vosso perfume natural, agora de jovens cada-vez-mais-mulheres, cujos cheiros por vezes imagino sentir ainda de quando bebés. Dos vossos lindos olhos azuis, estranhamente herdados em linha directa dos vossos avós, que assim decidiram perpetuar-se à nossa mesa e cuja forforescência rivaliza com a das lâmpadas chinesas que polvilham a árvore guardadora dos presentes e das memórias de todos. Da ondulação dos vossos corpos em reboliço no meu colo, que com o tempo subiu do chão para os sofás da sala, as vozes, os cabelos, os braços, as ancas, os joelhos, os pés, a crescerem mais depressa do que a minha capacidade para os segurar. Do que, enfim, acordamos os quatro passar a fazer erguer como tradição nossa, do passeio de véspera pela Santa Catarina, a divertirmo-nos com a azáfama do prendismo-obrigatório, do de antes da ceia pelo vento fresco da marginal, embalados na noção de que o mundo acaba dois passos em nosso redor, ou da fria peregrinação até à Missa-do-Galo, deixando para trás a doçura da ceia a que costumamos voltar, num semi-sacrifício concedido às tais tradições que juramos valer a pena manter. Tenho pena de não ter podido rever convosco, desta vez, alguns dos registos filmados do nosso passado, de não ter participado no nosso concurso de adivinhar quem-é-quem de vocês dentro daquela touca azul-turquesa ou daquele vestido côr-de-rosa que compramos naquela loja durante aquela viagem que fizemos todos juntos aquele sítio, ou de não ter feito parte dos sketches que depois reveremos com gosto nas reuniões seguintes. Tal como lamento não ter assistido agora ao relato dos vossos trilhos de caloiras, seguramente as mais belas, na Universidade e no teatro, mais as outras confidências de que ainda poderei ser depositário, antes da chegada do tempo em que naturalmente tenderão a afunilar-se. Talvez que depois sobrasse ainda tempo para vos falar do que me têm ensinado estas partidas da vida, e de que os sonhos existem para se perseguirem, embora com os pés bem assentes no chão, e de que, suspeito, o futuro ameaça vir a alterar-se mais rapidamente do que o fazia no passado, e de que nem sempre deveremos esperar pela onda óptima mas, antes, surfar a mais próxima, e... Talvez que então acabassem por me interromper, na vossa clarividência de teen-agers, para confirmar que o vosso velhote não terá, afinal, atributos de surfista e que talvez comece a repetir o que outros antes dele já afiançavam, numa renovação de testemunhos, temores, anseios e desejos de que o Natal será, também, feito. Gosto de acreditar que esta nossa separação, fortuita e involuntária, apenas antecipará outras que, certamente, haveremos de fazer no futuro, cada vez mais longínquas e demoradas mas, espero também, jamais definitivas. Tal como acredito que, embora por caminhos diferentes, serão sempre feitas pelos mesmos passos.

7 comentários:

Unknown disse...

fOI A APRIMEIRA VEZ QUE ENTREI AQUI...CLARO QUE VOU VOLTAR...

Roberto Ivens disse...

Pois seja bem-vindo, Bento.

Anónimo disse...

Bonito,muito bonito.Parabens.Vou voltar mais vezes.Vitor Nunes

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

um texto muito bonito que me comoveu.

obrigada por partilhar...

Desejo-lhe um 2009 sem saudade ou então, com uma saudade boa, que não doa muito...

Roberto Ivens disse...

VN,

Será sempre bem-vindo.

Roberto Ivens disse...

Julia,

Tem razão, há saudades «boas» e... das outras. As quais, apesar de tudo, passam a mais suportáveis quando se despejam. Daí, também, o blog...

Roberto Ivens disse...

Phi e Bá,

Não vou publicar os vossos comments. Ficam registados onde já estão. Naquele doce cantinho do ventrículo extra que ganhei desde que vos conheço...