sábado, 3 de janeiro de 2009

Maior que o Nobel

Um atípico dia em Cabo Ledo, nublado, chuvoso, fresco, ventoso, grandemente passado sob um toldo de palha a experimentar-se como guarda-chuva, a ida à água para molhar apenas os tornozelos e o «Livro de Crónicas» que sai, pela enésima vez, do meu saco de praia para que possa mergulhar no reconfortante oceano de palavras de António Lobo Antunes. Não conheço ninguém que escreva tão bem quanto Lobo Antunes. E que acrescente às palavras, às frases, à narração, ao ritmo, aos personagens, ao quotidiano deles, aos sentimentos, às figuras de retórica, aos sentidos de tudo isto junto, duplos, triplos, a plasticidade que faz com que o que escreve nos surja, afinal, como um filme projectado. Leio Lobo Antunes desde «Memória de Elefante», isto é, desde o início e, curiosamente, nunca retive uma história a qualquer um dos seus cinco primeiros livros, que li, ao tempo, seguidos. Pelo contrário, fiquei sempre com o tal filme, o mesmo filme, como se fora autor de uma obra só, um grande romance editado em vários capítulos com nomes próprios. Já nos «Livro de Crónicas», que tem três edições, é possível isolar histórias, pessoas e enredos. Os personagens, algumas vezes confundidos com o narrador, tornam-se mais precisos, absurdamente humanos, como o são as pessoas e os ambientes em Lobo Antunes, seguindo o mundo e a geografia donde vivem, quase sempre nos arredores de Lisboa. Leio o «Livro de Crónicas» como se diz dever ler a Bíblia. Pousado na cabeceira, recomeço a ler do princípio quando chego ao final. Tenho reencontrado o mesmo prazer da surpresa da leitura inicial e continuo a soltar as mesmas gargalhadas, agora nas praias quentes da África onde, curiosamente, ele começou a escrever. Há quem diga que Lobo Antunes já seria Nobel se tivesse namorado uma jornalista literária. Diz-se também que trabalha mais de doze horas por dia, assumindo que um escritor é um trabalhador das palavras. Talvez por isso não tenha tempo para namorar. O que é pena, pois o Nobel só teria a ganhar com isso.

8 comentários:

João Paulo Toledo disse...

Muito maior que o Nobel, sem dúvida! E eu que achava que a literatura resumia-se a Saramago até passar dois meses num vai-e-vem descabido com o "Fado Alexandrino", as páginas riscadas e cheias de post-its, tentando entender qualquer coisa e desde então revirar a obra de Lobo Antunes de "memória..." até o seu "arquipélago da insônia", fenomenal. Em Luanda, na Lello, descobri as cartas de guerra, simplesmete um soco no estômago.
Abraço,
JPT.

Roberto Ivens disse...

JPT,

Concordo. A narrativa do «Fado...» é algo marada, principalmente se se começar aí Lobo Antunes. As «Cartas da Guerra», trinta anos depois, vêm confirmar a genuinidade de muitas coisas, incluindo o seu universo literário...

septuagenário disse...

Mas o segredo, o tal clic, o momento certo, para se ganhar um prémio, uma lotaria, é preciso juntar tantas combinações e tantos factores, que, neste caso só o facto de escrever muito, bem ou mal, não chega.

E se em português temos um Nobel, devemos em 1º lugar a um Subsecretário adjunto da Cultura, SOUZA LARA, que ao censurar o EVANGELHO, aliciou as criticas dos bispos, o que levou SARAMAGO a refugiar-se, desgostoso em LANZAROTE, no exacto momento em que o juri do NOBEL estava concentrado para decisir.
Eis o clic!

Roberto Ivens disse...

Septuagenário,

Bem-vindo ao blog. Quem sabe se Lobo Antunes não andará a pensar em acampar nas Berlengas...

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

Penso de certa forma diferente de si, embora concorde em parte. eu explico - acho que Lobo Antunes tem as crónicas mais lindas, escreve as mais bonitas metáforas, mas não sabe fazer contos, fazer romances. TEnho todos os livros dele e confesso que me sinto atarantada para seguir e concluir a leitura de cada um, acabei sempre por desistir e acabo sempre por ler cada um deles de forma a não me preocupar com a história,lendo cada livro fragmentando-o de forma alietória, porque ele próprio se perde nos enredos, como poderei eu segui-lo? Não estou sozinha nesta opinião, mas mesmo que estivesse, assumi-la-ia. Não me dá prazer ler os romances de Lobo Antunes, dá-me prazer apreciar as suas metáforas, ler as suas crónicas.

Roberto Ivens disse...

Júlia,

É curioso que, embora não as percebendo, já ouvi opiniões algo idênticas a esta sua. Com a excepção do mais incompreensível «não sabe fazer contos, romances»...

-JÚLIA MOURA LOPES- disse...

pois, Roberto, não consigo ler um livro dele seguido, a culpa deve ser minha. O pior é que os meus amigos pensam que eu gosto dos livros dele e oferecem-me sempre :-/

Roberto Ivens disse...

Julia,

Deveria estar agradecida a LB, pois os livros dele vão valendo pelas suas amizades. Valor raro e, também, cultutal...