sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

A minha São Silvestre de Luanda

Como eu já previra, tudo foi feito para que não pudesse vencer a prova. Já antes, mal foi soprada a minha inscrição, foram convocados os melhores atletas do mundo. A frase-de-ordem era clara. O Tuga não pode ganhar. Por uma vez, senti-me na pele dos representantes portugueses no Festival Eurovisão da Canção. Mas nem assim desfaleci na minha firme intenção de ir à luta. Besuntei os pés de creme gordo, troquei as palmilhas das sapatilhas, calcei um par de peúgas rotas para melhor ventilação e apresentei-me já equipado no local de partida. Mas logo aí me apercebi de que já estava montada a marosca. Começaram por me perguntar se estava inscrito na prova principal dos 15 quilómetros ou na Corrida das Famílias, como se fosse possível a um atleta do meu gabarito ficar-se por uma voltinha de 4,5 quilómetros. Depois, recusaram-se a deixar-me partir na linha da frente com a justificação de que eu não era um «atleta credenciado». Perguntei-lhes onde deveria ter tirado a tal credencial e não souberam responder-me. Senti-me vingado quando ouvi os altifalantes anunciarem que os tais atletas credenciados seriam obrigados a usar um chip, certamente que para evitar que fizessem a conhecida batota de atalhar caminhos. Pelo contrário, fiquei isento de tal controle, no que assumi o reconhecimento do meu estatututo de atleta cumpridor integral das distâncias que faço. Quando ouvi o sinal de partida, lá bem no meio do pelotão de concorrentes, encontrava-me ainda a apertar o segundo nó nos atilhos, pelo que, quando parti, os da frente já teriam sobre mim, seguramente, uma vantagem de mil metros. Mas, ao final do terceiro quilómetro, eu já dominava a corrida. Na esteira da escola de atletismo que perfilho, a melhor forma de se aquilatar das condições em que decorre uma prova, ter a melhor percepção dos adversários e, mais, das diferenças de tempo entre cada um, é vê-la de trás. Foi o que fiz. Deixei-me então ficar numa posição de rectaguarda, donde podia dominar toda a corrida. Ao quilómetro sexto, passei por um grupo de atletas algo heterogéneo mas com futuro garantido noutras modalidades. Primeiro, um indivíduo que corria apenas de calções de lycra, bem enterrados no rabo, a que agarrava uma corda que entrelaçava nas ancas e nos ombros e que acabava numa coleira que trazia ao pescoço, donde saía depois um trela que mostrava à assistência, em brasa de riso e aplausos, mal se punha a caminhar com os braços estendidos para a frente, os pulsos para baixo e a língua de fora, a simular uma cadela na companhia de um dono imaginário. Mais à frente, um par igualmente com futuro promissor, com as carapinhas pintadas de amarelo e vermelho, simulando streep-teases contínuos, com as camisas de alças a rodopiarem no ar e a fazerem levantamentos furtivos dos calções, mostrando à assistência em delírio ora uma, ora outra, bochecha do rabo peludo. A partir do décimo segundo quilómetro, já diluída a Gay Parade, o meu domínio da corrida passou a ser quase absoluto, Foi quando detectei ter o carro-vassoura a pouco mais de quinhentos metros. A partir daí e até à meta, situada em pleno Estádio da Cidadela, foi um sprint contínuo. Beneficei também nessa altura da companhia de um mascarado, equipado com um fato de treino completo e capuz enterrado até ao pescoço, que trazia enrolado a tiracolo um pedaço de alcatifa que lhe dava um ar de deslocado explorador da Antártida. Foi então sob uma chuva de aplausos da vasta assistência, que passou mimosamente a incentivar-me com gritos de «Pula», que encetei a minha recuperação, passando por uma multidão de adversários, creio que três, que haviam parado entretanto por causa das bolhas nos pés. Quando entrei no estádio, já com as bancadas vazias, ainda cheguei a tempo de receber os parabéns de um desconhecido, que se interessou pelo meu par de sapatilhas mal as descalcei no relvado. Valeu-me um dos Ninjas presentes, desportivamente armado até aos caninos na guarda da tenda da enfermagem, sem o qual regressaria certamente a casa descalço. Quanto à minha classificação na corrida, ninguém foi capaz de me informar, nem nada saiu na comunicação social angolana. Um boicote absolutamente inexplicável. «Para o ano há mais», dizia-me alguém no final, no que não tenho podido deixar de concordar. E, nessa altura, doa a quem doer, terei já um histórico pergaminho a defender na prova.

1 comentário:

macedo disse...

só hoje tive conhecimento deste seu bloge..

parei neste para o comentário..

muito bom...

continue..

(já agora, eu sou um daqueles muito novos, desta nova emigração(se bem q no meu caso n se pode falar bem disso, para pena minha)de que falou num post anterior..tive aí à dois anos, apenas durante uns meses...ainda n saiu de mim...